sábado, 1 de novembro de 2008

O lado oculto da Lua





Pink Floyd - Brain damage / Eclipse (The Dark side of the Moon)


Elizabeth Wilde...

Diz-vos alguma coisa?

Não, não se trata do nome de algum familiar ou descendente do grande escritor Oscar Wilde. Aliás, tanto quanto vim a descobrir quando investiguei sobre o assunto, estamos perante um apelido muito comum em terras de Sua Majestade. A propósito de Sua Majestade: pois é, Elizabeth, a segunda rainha daqueles domínios com esse nome, tendo sido a primeira uma Tudor, filha da Ana Bolena e do Rei Henrique VIII, que acabou por mandar decapitar esta sua segunda esposa, depois de a ter mantido presa na Torre de Londres...
Bom, a verdade é que esta Elizabeth Wilde não tem nada a ver com os Wilde da Irlanda, muito menos com os Tudor e menos ainda, se possível, com as Bolena, porque... bem, porque a pessoa que tem estes dois nomes em documentos legais, como o B.I., o NIF e a Carta de Condução, é esta vossa amiga.

Podem pasmar de espanto!

Para meu imenso embaraço, como podem calcular, o meu nome completo (que só uso mesmo para fins oficiais, quando a isso sou obrigada) é: Mafalda Elizabeth Wilde Coimbra. É um horror, eu sei. Por favor, sendo meus amigos, não comentem sobre esse facto que tanto me desagrada.

Imaginem-me com ar "enfiado" e a responder em voz baixa, para logo ter que repetir mais alto porque, do outro lado, invariavelmente, quem perguntou não percebeu à primeira, a dizer a uma autoritária funcionária pública que, literalmente, grita:
- NOME COMPLETO!
(BRRRR!!! que raiva!)...
Mas porque vos estou a revelar esta verdade?

Porque acho que devo, para bem da lealdade que tenho para convosco, e da minha consciência, dizer-vos, de uma vez por todas, que, em termos de filiação, metade de mim é inglesa...
Ninguém é perfeito, não é assim?
Pois eu tenho que carregar este fardo durante a minha vida e, pior do que isso, transmiti-lo nos genes aos meus descendentes.
Mas chega de suspense, e vamos a contar a história depressa, para depois não mais se falar sobre o assunto:

Como devem saber, perdi os meus pais num trágico acidente de viação. O que a grande maioria de vós não sabe é que a minha mãe se chamava Anne Wilde. Mais propriamente, Anne Saint-John Wilde mas, tal como eu, apenas usava o primeiro e o último nome.

Em criança, com a curiosidade e persistência própria da idade, muitas vezes fiz perguntas directas, que agora percebo tenham sido extremamente embaraçosas de responder pela minha querida avó Luísa, relativamente aos meus familiares do lado materno. Entre as respostas que ela me foi dando ao longo dos anos (mais tarde já mais abertamente, embora eu sempre tivesse sentido que, com toda a razão, o assunto lhe era extremamente confrangedor) e algumas conversas que fui "apanhando" entre a avó e a Madalena, consegui juntar as peças do puzzle e chegar ao que passo aqui a resumir:

O meu pai, licenciado em medicina pela Universidade de Coimbra, foi fazer o internato para a especialidade de neurocirurgia num conhecido hospital de Londres.

Na rua onde morava, quase em frente, vivia também uma jovem estudante de Artes, que se tinha deslocado para a capital para frequentar a Faculdade. Vai na volta, conheceram-se e apaixonaram-se (acontece, pois é, eu sei!...).

O pior é que a minha avó materna - Marion de seu nome, como a bem-amada do lendário Robin Hood (não Marian ou Marianne, como qualquer plebeiazita), nunca aceitou aquele namoro, tendo chegado ao ponto de dizer à minha mãe, quando soube da intenção do jovem casal, de "juntar os trapinhos" que, se isso acontecesse, e a minha mãe teimasse em ligar-se, através de laços matrimoniais, àquele homem do Norte de África, ou do Sul da Europa, ou lá o que era, nunca mais a consideraria como filha.

Viúva há alguns anos, a avó Marion tinha-se esquecido que, ela própria, uma Saint-John, tinha casado por amor, contra a vontade da família, com alguém vários degraus abaixo na escala social, o meu obscuro avô Christopher Wilde (porque não fazia parte do círculo de gente considerada "de linhagem" na preconceituosa sociedade de York).

Adiante: os meus pais decidiram que o amor que sentiam um pelo outro era mais importante que tudo o resto e vieram viver para Portugal, onde casaram e ficaram aqui no casarão, com a avó Luísa e o avô Augusto. Algum tempo depois nasci eu... e morreram quando ainda não tinha completado dois anos, razão pela qual não tenho deles qualquer memória, a não ser a que fui construindo a partir das fotografias que vi centenas de vezes e de algumas recordações partilhadas pela avó Luísa.

Tanto quanto pude apurar, nunca mais foi trocada uma palavra entre a minha avó inglesa e a minha mãe, nem sequer quando eu nasci, apesar de ela ter sabido, sem dúvida, do acontecimento, através da minha tia Emma com quem, ao que parece, a minha mãe sempre foi mantendo contacto por escrito.

Segundo a avó Luísa, estiveram presentes no funeral de meus pais a avó Marion, o tio William e a tia Emma, que desapareceram sem deixar rasto, rumo a Harrogate, (a cidade do Yorkshire em que habitavam na altura, terra de gente nobre, ou, pelo menos, endinheirada) imediatamente após a cerimónia.

No fundo do meu ser, lamento não ter tido oportunidade de conhecer ninguém daquele lado da família. Sim porque, afinal, eu ainda tenho uma família, que desconheço: quem sabe se uma avó viva, tios, primos... enfim... infelizmente apenas consanguinidades! Mas se eles nunca quiseram saber de mim, também não é agora que vou procurá-los!

Meus queridos Pais! Em relação a eles, pelo contrário, sinto uma tristeza infinda por não os ter conhecido e pelo fim trágico que teve a sua vida!

Do meu pai, Luis Filipe, a minha avó falava frequentemente. Contava, e recontava, histórias das suas traquinices enquanto criança e das "ralações" que lhe deu, durante os tempos de estudante em Coimbra. Da minha mãe, só soube pela avó Luísa que era muito bonita, com uma bela figura e uns lindos olhos claros. Ainda de acordo com a avó, tinha uma voz muito doce e tendia a falar em tom baixo... como se quisesse passar despercebida, numa reunião de amigos, como numa conversa estritamente com os de casa. Vejo, pelas fotografias, que também tinha um belo sorriso, embora não consiga perceber se nela era uma constante ou se apenas o usava nos retratos!

Mas chega desta história triste!

Vou agora passar a falar-vos dos nossos planos para o "casório". Então é assim:

  • A data já está marcada: dia 8 de Dezembro, pelas 12h30m
  • O local: a capela aqui da quinta, onde os meus pais, e outros meus antepasssados do lado paterno, também fizeram os votos e onde eu fui baptizada.
  • Padrinhos:

- do lado do Gervásio: o Rodrigo Rodrigues (Fernandes, na realidade) e a Teresa Sofia (ambos sem qualquer comentário meu, como é óbvio)

- do meu lado: os mesmos que irão apadrinhar a nossa criança que há-de ser: a Maria Carvalhosa e o Rui Fernandes

  • Convidados: para além da família directa dos meus padrinhos, o Luis Fernandes (irmão mais novo do Rui e do Rodrigo) e respectiva família: esposa e dois filhos; o meu primo José (do lado da família que tem origem em Marco de Canavezes - primo direito e grande amigo do meu pai) e os seus quatro filhos, dos quais destaco a minha prima Susana, da minha idade, filha mais velha e minha companheira de férias aqui, nas cercanias de Carrazedo de Montenegro, desde pequenina até aos tempos de faculdade, em que ela foi estudar para Lisboa e eu para Espanha. Como é natural, ela arranjou namorado e um grupo de amigos com quem passou a ir de férias de Verão. Tenho muitas saudades dela e vai ser óptimo revê-la! Depois, apenas do meu lado virão alguns bons amigos, como a Ana Cristina, a Teresa, o João e, como não poderia deixar de ser, o meu companheiro de viagens e aventuras: o Nacho, de Salamanca. Para minha dor, apenas o meu grande amigo Manuel, que se findou há uns meses, não poderá estar presente. No entanto, se for verdade que existe uma vida para além desta, e que nos é possível viajar entre os dois mundos, embora invisíveis quando já partimos, tenho a certeza de que o Manuel estará junto a mim, partilhando da minha alegria... e eu sentirei que ele está por perto!

Será uma cerimónia simples e muito restrita, como podem constatar.

Imagino que, por essa altura, vá estar um frio de rachar aqui na serra mas, tendo em conta a excelente ementa que estamos a pensar para o almoço, bem regada por criteriosamente escolhido vinho do Douro, (tarefa a cargo do Gervásio) não me parece que os convidados venham a pedir o livro de reclamações!...

E fico-me por aqui. Espero ainda voltar ao blogue antes da data aprazada mas, tendo em conta os muitos afazeres e a preparação do evento, não prometo nada... para não faltar!

O que importa é que vos vou ter no coração, meus amigos, de quem tenho recebido tanto apoio e provas de amizade!

Até lá... sejam felizes, como eu desejo sê-lo!

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

A primeira "eco"



"Como vês, Mafalda, está tudo bem. Não vejo qualquer necessidade de fazer a amniocentese", disse a Ana Cristina, minha colega obstreta, que logo me apeteceu abraçar e beijar.
Em vez de ser eu a fazê-lo, senti um beijo na testa... longo e meigo... era o "pai babado", pois é claro!

Fomos para casa a cantar "La Donna e mobile", ao desafio com Pavarotti... (risos) como se fosse possível! Não é que o Gervásio não tenha uma excelente voz e não se esforce (sobretudo nas notas mais altas!.. pronto, pronto, já não rio mais - por agora - prometo!)

"E não é que a menina é mesmo linda?" pergunta-me o Gerbas (como lhe chama o Rui) ainda emproado de Pavarotti... tenho que voltar a rir, afinal. Às gargalhadas, desta vez. "Tu e a tua mania de que há-de ser uma menina... por acaso lhe conseguiste ver o sexo? Nem a Ana Cristina se atreveu a arriscar... para não errar... mas tu, meu querido, tens a certeza de que é uma rapariga... até porque não detectaste qualquer protuberância entre as perninhas da criança, não é assim? Quanto a ser linda, aí estou de acordo contigo... qualquer feto de 12 semanas é de uma beleza inimitável... mas só pelo facto de se tratar de um ser vivo que germina dentro de nós... não mais do que isso!" mais risos, inevitavelmente. Desta vez, em coro... afinado, para variar!

Quando parámos o carro, após a longa e bem-disposta subida para o monte, disse-me: "Espera aí! Não saias ainda" (lembrei-me logo daquela canção da Bethânia ("e eu, como era de costume, obedeci" mas, agora, contive o riso).
Eis senão quando deu a volta, abriu a porta e pegou-me ao colo. Foi assim que entrámos em casa, como num filme, quando os recém-casados, finalmente livres dos convidados, entram num espaço só seu e gritam em uníssono: "enfim sós!". Demais!... demasiado cinéfilo para ser verdade... mas foi. Isto e o resto:

Despejada que fui, cuidadosamente, no sofá da sala, o meu amado ajoelha-se junto a mim, mete a mão ao bolso e saca de uma caixinha que, mais uma vez, tal como nos filmes, só podia conter um anel de noivado. Aqui, ía-me engasgando para suster o riso. Mas consegui... e lá saíu, dos seus lábios, a esperada frase: "Casas comigo, Mafalda?"

Abracei-o, muito, de tão incapaz que me sentia de balbuciar qualquer palavra (pelas mais variadas razões... sendo a principal a vontade de rir, que só a muito custo conseguia conter).

Passados uns momentos, e uma vez que eu não lhe largava o pescoço, quase o sufocando, o Gervásio enervou-se: "Então? a resposta é para hoje?"

"Sim", consegui responder.

"Sim, é para hoje... ou sim, casas comigo?"

"Ambas" respondi, soltando finalmente o riso, que não conseguia mais aguentar. Beijei-o de seguida, para lhe provar que não estava a brincar, apenas extremamente divertida e bem-disposta.

"Vamos fazer a lista?" perguntou ele, de imediato, levantando-se como se estivesse ajoelhado sobre uma mola.

"Lista de convidados, amor? Mas ainda nem falámos em data, nem local... tem que ser tudo assim a correr?" atrevi-me a perguntar, agora já um pouco cansada de tanta excitação em tão pouco tempo.

"Sim, meu amor. A lista de convidados é fundamental. A data... hum... assim que a burocracia o permitir... não quero a minha noiva com a barriga ao pé da boca!!! quanto ao local... parece-me óbvio que seja aqui mesmo, na capela da tua casa... este lindíssimo casarão onde te descobri numa noite de vendaval!"

Estava rendida. Tinha mesmo que ser assim. Com o Gervásio, uma vez dito, estava decidido. Para mim, aproximava-se agora a parte mais difícil: a famosa lista. Era certo que iríamos passar o jantar e uma boa parte do serão a decidir quem iriam ser os padrinhos e se eu deveria, ou não, convidar a minha família de Inglaterra, afinal os meus parentes mais chegados, através de laços consanguíneos, embora não tivesse, para com eles, qualquer sentimento de afecto... enfim!... como não se fartava de repetir o parvo do Castelo-Branco "noblesse oblige"... "ou não" , digo eu...

Voltarei com notícias em breve. Agora tenho mesmo que ir descansar um pouco antes do jantar e da controversa batalha que pressinto estar para aí a formar-se.

Beijos, meus amigos blogoesféricos, para quem escrevo como quem o faz para um diário, com a diferença de que é certo e sabido que, desse lado, alguém amigo me lê e responde.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Nas tuas Palavras


O meu amigo Paulo de Carvalho , a partir de um comentário que fiz ao seu poema "Movimento a um tempo de pausa", transfomou as minhas palavras, em prosa corrida, em algo que me atrevo a considerar, com esta nova estrutura, uma tentativa poética. Aqui reproduzo, com muito carinho, o novo arranjo com que ele me brindou:


Na casa do alto do monte
[apesar do vento agreste
os teus versos ecoam
- memórias de lendas antigas
chegam-me os sons de cordas tocadas
[por bardos e menestréis
em alaúdes e bandolins.

Nas tuas palavras soam...

as mais lindas baladas que algum trovador já cantou.
Contigo, regresso a um passado imaginário
[onde, no intervalo das danças
bobos da corte exibem
- acrobacias
os cavaleiros bebem
- doces néctares
e as damas sorriem
- e murmuram disfarçando contidos pudores
e abanando os leques.


Obrigada, Paulo (assim até parece que sou um "bocadinho" poeta...).

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Estou de "Esperanças"


Picasso - Maternidade

É mesmo! Estou grávida de oito semanas. Ainda nem acredito! O Gervásio, então, não cabe em si de contente!... Diz ele que nunca tinha pensado em ter filhos... até me ter encontrado (dá cabo de mim com mimos, este homem!). Eu, pelo contrário, sempre quis vir a ter filhos, constituir uma família, mas nunca pensei que tudo acontecesse assim tão rapidamente. Pensando bem, ainda há pouco mais de quatro meses, o futuro pai do meu filho (ele diz que vai ser uma filha... vá-se lá saber porquê!) era um completo desconhecido, de quem eu tinha tinha lido apenas uns textos num blogue, e que o meu amigo Rodrigo descrevia como tratando-se de um homem inteligente, metódico, educadíssimo, mas totalmente excêntrico e, posso confessá-lo agora, eu imaginava-o meio desaparafusado e um canastrão sem ponta por onde se lhe pegasse!

Diz o povo, e os meus amigos sabem como eu tenho apreço pela sabedoria popular que "quem feio ama, bonito lhe parece". Será o caso? Não é que isso me importe, verdadeiramente, a não ser pela possibilidade de alguns genes "desengonçados" e "de beleza duvidosa" serem herdados pela minha criancinha, que já tanto amo e imagino que venha a ser bonita como um dia radioso no alto do monte. No fundo, não passo de uma aquariana romântica... Ciência? O que é isso? Uma mulher grávida apenas deseja que o seu bebé nasça são, escorreito, e perfeitavelmente saudável. Inevitavelmente, e por mera coincidência, o mais lindo do mundo, é claro!...

Por acaso passará pela cabeça de alguém que uma futura mãe, pelo facto de ser médica (ainda por cima com pediatria por especialidade), pense, nesta altura, de forma diferente de uma cozinheira, de uma engenheira, de uma professora ou de uma camponesa? Desenganem-se! Somos todas iguais... quando se trata da nossa futura cria, terá quer ser perfeita, como é óbvio.
A verdade, verdadinha, é que, desde que está comprovada a gravidez, dou por mim, de quando em vez, a olhar de esguelha para as feições do Gervásio, "como quem não quer a coisa", e a pensar: "se saír ao pai, vai ter uns olhos lindíssimos... já se lhe herdar as orelhas... uma operaçãozita plástica é capaz de resolver isso em três tempos... quanto ao resto, não me preocupo, ele tem tudo no sítio." Enquanto estou ocupada com estes pensamentos, esqueço-me de me olhar ao espelho, convencida que sempre fui de que sou bonita... e pronto! (lá vaidade não me falta, não é assim? ... mas se é o que eu sempre pensei, meus amigos... vou estar agora com falsas modéstias para quê? e para enganar quem?)
Bom, agora muito a sério, não é tudo tão superficial como estou a querer fazer parecer. Preocupo-me, seriamente, com os aspectos de ordem fisiológica e mental do meu filho. Não desejo para ele que seja uma criança sobredotada (detestaria mesmo que o fosse - só quero que o meu filho tenha um Q.I. considerado normal) mas tremo só de pensar em diferenças como as provocadas pelo síndrome de down, o autismo ou... fiquemos por aqui. Chegam-me os fantasmas que enfrento, frequentemente, quando pais, de olhar aterrorizado, mudos perante a notícia, ficam a saber que o seu "lindo menino" tem uma doença congénita incurável, ou é portador de um vírus potencialmente fatal.

Comecei este post com boa disposição e assim tenciono terminá-lo. Estou feliz como nunca. Dou por mim a cantarolar à toa, a sonhar com crianças a brincar no jardim, sinto-me a mulher mais aventurada do planeta e todas as pequenas coisas do quotidiano que me aborreciam, ou incomodavam, passaram à categoria de "insignificantes", face a este grandioso acontecimento que é o facto de ter, no horizonte de sete meses, a perspectiva da maternidade.
Voltarei com novidades, quando as tiver.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

A ponta do véu...

Foto extraída da net de "Véu da Noiva", Porto Moniz, Ilha da Madeira

Rebento se não vos conto. Tenho aguentado este segredo, bem escondidinho, e permanecido silenciosa no blogue, até porque o conteúdo do segredo por revelar me ocupa muito tempo.Tempo de qualidade, é claro, por isso estou hoje doida de contente.

Lembram-se de, num post do início de Maio, vos ter falado de uma visita inesperada?
Pois bem, o "bom gigante" é realmente uma excelente pessoa, uma companhia formidável, um interlocutor com quem não apetece parar de falar, alguém que tem sempre algo de sábio para me dizer e de terno ou espirituoso para tornar radiosos os meus dias mais sombrios.

Nunca me senti atraída por um homem apenas pelo seu aspecto físico. Na realidade, pensando bem, foi sempre pela cabeça que comecei por me interessar por alguém e só depois reparei nos pormenores fisionómicos que, inevitavelmente, intensificavam a atracção. Isto não faz com que a galeria de homens por quem me tenho interessado se pareça com um casting de actores à procura de um papel num filme de terror... nada disso. Significa, isso sim, que não me deixo levar pela beleza exterior, que essa, em primeira instância, nada me diz. Se puder juntar "o útil ao agradável" é claro que o resultado pode ser francamente bom! Não vou aqui tentar descodificar o útil e o agradável, principalmente porque, neste caso específico, teria dificuldade em destrinçar qual dos aspectos é o quê... será uma cabeça prenhe de conhecimentos útil? Sem dúvida! E agradável? O mais possível! Serão uns lábios quentes e generosos úteis? Tendo a afirmar que sim, sem reticências. E agradáveis? Podem sê-lo... e muito!

Posto isto, vou-me ficar por aqui. A verdade é que já são 20 horas e, não tarda nada, o meu convidado chega para jantar. Acredito que não ficará zangado com esta inconfidência. Afinal, todos os meus amigos virtuais já andavam preocupados com tanta angústia que parecia ter-se acumulado em mim nos últimos tempos e, creio sinceramente, ficarão felizes ao saber que agora me sinto leve, despreocupada, solta e alegre. Para ele não é novidade e, de certa forma, apesar da sua aparente insuperável timidez , talvez até fique agradado com esta revelação.

Veremos... (contar-vos-ei o que bem entender, quando e se me apetecer!)

Deixo-vos com um beijo, meus leitores amigos, sempre tão solícitos, em empatia e compassivos para com a minha vida.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Retrato de Família


Vivo sozinha com um gato. Procuramo-nos, no casarão imenso, única companhia que somos um do outro.

Gostava de ter um retrato de família, daqueles em que podemos observar, a sépia, a preto e branco ou a cores um conjunto de pessoas, eu incluída, com afinidades consanguíneas como avós, pais, filhos, irmãos, tios, sobrinhos, sogros, cunhados, primos também... daqueles que eternizam um dia festivo e em que, só de olhar, se tiram parecenças e se diz, “que parecida eras com a tua bisavó Matilde”.

Gostava de ter tido uma família, uma família completa, numerosa, que, para além de retratos em conjunto me tivesse deixado, em herança, memórias de partilha, de convívio, de união, em vez do casarão imenso que antes de mim povoaram e onde agora vivo sozinha com um gato.

domingo, 11 de maio de 2008

A visita do bom gigante

"O gigante" - pintura de Goya - 1818

Sentada no velho e aconchegante cadeirão de verga, com o Nanu a fazer ron-ron sobre os meus joelhos, absorta na leitura à suave luz do candeeiro de pé, pareceu-me ouvir bater no vidro da varanda, mas ignorei. Empolgada que estava com aquela parte da estória, poderiam caír raios e coriscos, lá fora, que isso não me faria levantar os olhos do livro.

Voltei a ouvir. Desta vez, pareceu-me, com mais força e maior urgência, enquanto uma voz masculina gritava, repetidamente, uma frase, da qual só conseguia distinguir a palavra "perdido". "Que maçada, alguém que se perdeu com este temporal, descobriu a casa e agora vem aí pedir ajuda", pensei sem, contudo, enfrentar a vidraça da varanda antes de ter acabado de ler aquele parágrafo.

Finalmente a insistência do estranho venceu a minha insensibilidade perante a potencial aflição de um ser humano, levando-me a olhar em frente.

Reparei que a tarde, com a abundante chuva que caía, se tinha posto muito escura, apenas iluminada, de quando em vez, pelo lampejo de um relâmpago.

Como que por um acaso providencial, exactamente naquele momento, um relâmpago iluminou a figura que, do lado de fora, evidenciava claramente querer falar comigo.

Vi o homem. Completamente ensopado e desgrenhado pelo vento, gesticulava para que o deixasse entrar e repetia a palavra "perdido", enquanto o ribombar do trovão se sobrepunha ao som da sua voz. O Nanu, acabado de acordar e receoso do rumo dos acontecimentos, fugiu, literalmente com "o rabo entre as pernas", para dentro de casa, deixando-me sozinha perante o desconhecido.

Assustada, embora tentando não o transparecer, levantei-me para lhe abrir a porta. Assim que o fiz, um gigantesco homem entrou de rompante, dizendo "Desculpe, Sra. Dra., mas com toda esta borrasca, o carro empanou-se-me a uns quilómetros daqui, e tive que percorrer o caminho a pé, debaixo desta verdadeira tempestade, para vir ter consigo. Sabe, eu não uso telemóvel, sou avesso a essas modernices. Só nestas alturas é que percebo a utilidade que poderia ter tido... teria chamado um reboque, por exemplo, que me tirasse daquele atoleiro. A propósito, peço desculpa por estar a sujar-lhe a entrada da varanda com tanta lama e a molhar tudo em volta, pois é...", pareceu notar, só naquela altura, a poça que começava a formar-se em torno dos seus pés, como resultado da água que lhe escorregava gabardina abaixo.

"Não se preocupe com isso", consegui balbuciar, embasbacada que estava com o estranho aspecto do sujeito e o ridículo da situação.

"A Sra. Dra. entenda que eu não queria incomodá-la, muito menos a esta hora e com este tempo, mas assuntos da maior importância levaram-me a procurá-la, e finalmente encontrá-la, apesar de todos os contratempos. Espero que não me leve a mal, ter aparecido aqui assim, nesta figura - devo estar com um aspecto aterrador - mas não podia adiar por mais tempo esta demanda. Felizmente que lá no hospital me souberam indicar onde era a sua casa: sempre a subir a montanha, curvas e contra-curvas, muito cuidado com as bermas que a estrada é apertada e a encosta é íngreme, vai até à aldeia e depois, lá, pergunta pela Casa do Alto do Monte. Toda a gente sabe onde fica. A seguir só tem que subir mais uns dois ou três quilómetros, com mais curvas e contra-curvas, por um caminho de macadame mas, quando estiver aí a 300m da casa, vê-a logo".

Interrompi-o, sentindo que, se não o fizesse naquele instante, nunca mais o conseguiria fazer, tal o caudal de palavras por segundo que conseguia debitar, "está bem, não se preocupe, já falamos com mais calma. O importante agora é tirar essa roupa molhada, esses sapatos alagados e secar o cabelo, não vá apanhar um resfriado, que depois degenere em pneumonia, e lá terei eu que entrar ao serviço, logo agora que tenho uns dias de folga", tentei dizê-lo com um sorriso embora, interiormente, continuasse amedrontada com a figura do homem e o inusitado da situação. "Ora dê-me cá o casaco, os sapatos e as meias e sente-se nessa cadeira, com os pés em cima da carpete. Isso mesmo."

Foi quando se sentou que me olhou de frente e me sorriu. Tinha um belo sorriso, numa dentadura impecavelmente alva, de dentes certos, o pior era o resto... aquela cara como que "esborrachada", as orelhas enormes, tipo "abano", os olhos excessivamente grandes, quase que esbugalhados, a cabeça demasiado bicuda no topo, assente nuns ombros largos através de um pescoço fino, demasiado fino para suportar o peso da cabeça, ía eu pensando enquanto fui lá dentro buscar um toalhão para ele se secar e umas meias daquelas sem calcanhares, bem grossas, que servem em qualquer pé... até naquelas pirogas sobre as quais ele sustentava o corpo! Outro tipo de roupa para ele se mudar é que não tinha! Ainda que ali existisse vestuário de homem, que não era o caso, nada certamente serviria àquele corpanzil invulgar. O melhor era trazer mesmo uma manta, para ele se agasalhar e não entrar em hipotermia.

Levantou-se quando voltei, como um cavalheiro faria, enfiou os peúgos de lã, embrulhou-se, o mais que pôde, na larga e grossa manta que lhe havia trazido, e preparava-se para retomar o monólogo quando me antecipei: "agora volte a sentar-se, tente manter-se embrulhado, enquanto vou fazer um chá bem quente, para o ajudar a recuperar da molha. Quer comer alguma coisa?"

"Não quero incomodar, Sra. Dra., mas, na realidade, uma ou duas fatias de pão com manteiga (ou mesmo com queijo, se o tiver), não iriam mal... sabe, isto de ter feito o trajecto aos ziguezagues e debaixo de chuva, deixou-me com alguma fraqueza".

"Compreendo", respondi, com um sorriso espontâneo desta feita "e eu vou aproveitar e lanchar consigo, que está bem na hora".

"Muito obrigado pela sua gentileza, Sra. Dra., depois irei ao que me trouxe aqui".

"Certamente", respondi-lhe já do corredor, com uma pontinha de curiosidade a despontar e o receio a desaparecer, em sua substituição.

Regressei com o carrinho de chá bem composto: para além do referido líquido milagroso, trazia um cesto rechado de fatias de pão caseiro, manteiga, queijo, presunto, morcela, doce de laranja e geleia de marmelo. Também trazia um pão-de-ló, quase inteiro, que a Clementina tinha feito durante a manhã.

Os olhos do homem, já com o cabelo seco após bem esfregado com a toalha mas, inevitavelmente, despenteado, arregalaram-se de gula e, mais uma vez com um sorriso "de orelha a orelha", agradeceu o meu gesto.
"De nada, vamos mas é beber o cházinho, enquanto está quente, e comer. A seguir, conversaremos" atalhei antes que ele desatasse a falar com a boca cheia, cena que não me apetecia, de todo, presenciar.

Terminada a merenda, bem saciado que julguei estar o apetite do meu inesperado visitante, decidi tomar as rédeas da conversa e adiantei: "então, conte lá porque veio procurar-me e acabou por perder-se... por estar doente não foi, certamente, já que, segundo me disse, veio do hospital para aqui..."

O gigante, que eu já deixara de temer, riu gostosamente. Agora, passada a aflição e reconfortado que estava, em porto seguro, descobriu prazer no propósito de me fazer "roer" de curiosidade.

"Vá lá", insisiti, "nem sequer sei o seu nome nem ao que vem". Podíamos passar à sala, onde já acendi a lareira e está-se mais confortável, agora que a noite caíu por completo e a tempestade não abranda. Aí, poderá contar-me tudo sobre as aventuras que o trouxeram até este ermo agreste".

"Obrigado, mais uma vez, Dra. Mafalda" era a primeira vez que mencionava o meu nome, como se já me conhecesse, facto que me fez voltar a estremecer e pensar se não estaria a ser demasiado confiante... sabe-se lá se ele não seria um "serial killer"? sorri, interiormente, pelo absurdo deste pensamento, enquanto, simultaneamente, me perguntava, "e se, pelo sim, pelo não, telefonasse para a GNR para saber se anda para aí algum assassino perigoso à solta?"

Rapidamente os medos se dissiparam, quando passámos à sala e nos sentámos no sofá frente à lareira que, desde logo, nos invadiu com o calor que libertava.

"Pois bem, estimada Dra., o meu nome é Gervásio, e há muito que a conheço... de longe, é claro... e, acima de tudo, o que é mais curioso, por interposta pessoa..." deteve-se, como que a observar o efeito que as suas palavras provocavam em mim. Verificando que eu permanecia serena, na calma expectativa do que seguiria àquela revelação que nada me trazia à memória, prosseguiu: "na realidade eu vim ter com a Sra Dra. para ver se encontrava o meu mestre e bom amigo Perdido, de quem não sabemos há algum tempo e que, por razões que não vêm agora ao caso, julgámos ter-se perdido por estas bandas, precisamente pelo bizarro costume que tem de se perder em sítios desconhecidos, com as desculpas mais inconcebíveis, ou sem desculpas, só pelo gosto de se perder. A Sra. Dra. não sabe, mas isto é uma coisa hereditária, que já lhe vem do avô, ou talvez mesmo do bisavô, agora não estou bem certo... na realidade, o nosso comum amigo chama-se Rodrigo Rodrigues e Perdido é alcunha de família."

"Ah!" exclamei... pouco certa de saber quem era o tal "comum amigo" Rodrigo Rodrigues... Para disfarçar, perguntei, quase sem me dar conta de que o fazia "quer tomar um porto, Sr...?"

"Gervásio Leonel, um seu admirador", respondeu de imediato, com aquele sorriso destoante do conjunto, "aceitarei o porto com muito gosto".

"Estou feita", pensei. "Agora trouxe o homem para a sala, sentei-o comigo à lareira e vou deixá-lo emborrachar-se de porto até caír para o lado... e a seguir, o que virá? Não tarda nada, estou a abrir-lhe a alma e a falar-lhe dos meus sofrimentos mais íntimos... é so acompanhá-lo num copito ou dois... mas lá que até me apetece... não vou negar. Afinal, depois da partida do meu amigo Manuel nunca mais consegui falar com ninguém... sobre qualquer assunto, mas sobretudo sobre esse... será que me vai dar para aí? Deixemos andar, mas é ... afinal, a vida não é só o que planeamos... ". Dei por mim a rir, bem alto, enquanto descia à garrafeira da avó para ir buscar um bom "vintage"... "se calhar ainda acabo a noite no sofá, envolta naqueles braços que me dão a volta ao tronco, a dormir tranquilamente... a ronronar como o Nanu, se soubesse fazê-lo... é verdade, onde se terá escondido esse malandro?"

terça-feira, 8 de abril de 2008

Porque afinal existem...


Pedi à minha amiga Maria Carvalhosa que me emprestasse uma fotografia das suas rosas-sem-espinhos porque, após tão prolongada dor e consequente silêncio, necessitava de recomeçar a escrever tendo por inspiração uma imagem leve, fresca, alegre. Pensei em rosas, mas logo visualizei os seus terríveis espinhos, que ainda sinto cravados bem fundos na pele, a dilacerar a carne, tão recente a sua memória. Foi então que me lembrei das rosas da Maria, dessa raríssima espécie de roseira, tão importante na vida dela e que hoje me apetece aqui evocar.

Preciso de dizer que o meu amigo partiu? Não creio. Nem vou falar disso a não ser para dizer que, na última e sentida homenagem, muitos amigos se lhe reuniram, apesar do dia cinzento, chuvoso e ventoso que foi o de ontem, uma das mais escuras e desagradáveis segundas-feiras deste ano. Ele teria gostado de os ver, de comprovar que o afecto não é um sentimento vão, que a amizade verdadeira se mostra em toda a sua plenitude quando quem morre conheceu o seu significado e viveu em função dele.

Agora uma novidade: eu, que não sou de escrever poemas, dei por mim a rabiscar um texto diferente dos meus escritos habituais. Por causa das rosas-sem-espinhos, certamente, saíram-me há pouco as palavras que aqui reproduzo e me atrevo a incluir na categoria poética (sem falsas modéstias, embora também sem pretensões):

Primeiro Beijo

Pela estreita vereda
corríamos de mãos dadas.
Na quente tarde estival
deixávamo-nos embriagar
pela vasta mescla de cheiros
a frutos, a flores silvestres,
e ríamos como loucos.
Éramos jovens.
Dentro de nós, ao olhar o sol
prestes a esconder-se
atrás de um pico da serra,
a vida acontecia como nunca antes,
e aquele era um momento de euforia,
de celebração de um sentimento
partilhado, sem palavras, em perfeita cumplicidade.
De repente, à nossa beira,
amoras negras e maduras
pediam que as saboreássemos.
Como resistir?
Tu colhias os frutos e,
com as mãos a ficarem tingidas de roxo,
depositavas na minha boca ávida
uma mão cheia do delicioso néctar.
Eu sorria e o meu sorriso ía ficando da cor das tuas mãos:
"Vá, assim não vale, também quero
ver o teu sorriso de amora".
Não te custava satisfazer-me. Eu sei.
Em breve, estávamos repletos de nódoas,
sujos de poeira, arranhados pelas silvas,
mas continuávamos a rir como se o mundo
fosse ficar assim para todo o sempre.
Numa curva do carreiro,
as rosas amarelas, sem espinhos,
faziam vergar o arbusto, de tão carregado
de flores abertas e botões a despontar.
Apanhaste um ramo,
prendeste-mo na trança negra,
que, já despenteada, pendia sobre o meu peito
do lado esquerdo, mesmo sobre o coração.
Sempre sem largarmos as mãos,
afastaste-te um pouco:
o suficiente para ver o efeito
do adorno com que me enfeitaras.
Disseste "és linda".
Eu acreditei.
Puxaste-me, então, para ti.
Encostámos, ao de leve, os nossos lábios
pintados de roxo, com as faces a arder
e o eco, em uníssono, da emoção a pulsar.




quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

O meu amigo está doente

"O Grito", de Edvard Munch

Tenho muitos amigos doentes. Por outro lado, muitos doentes são meus amigos e eu sou amiga de todos os meus doentes.

Mas neste caso é diferente: tenho, mesmo, um AMIGO doente. Ou antes, o meu AMIGO está doente. O pior de tudo é sentir-me impotente para fazer com que ele deixe de o estar. NÃO, digo eu, em silêncio, em voz alta, em quase desespero permanente, não ele, não o meu amigo... por favor, pergunto-me inquieta, desolada, numa amargura profunda, o que posso fazer para ajudar?

Não quero ter como resposta que não há nada que eu possa fazer. Há-de haver, sem dúvida, algo com que eu possa, de alguma forma, contribuir para que a dor de se saber doente não o torture, para além de lhe aliviar a dor física tanto quanto me é possível. Já fiz de quase tudo: li-lhe versos de Álvaro de Campos, cantei-lhe ao ouvido músicas doces e ternas, tentei fazê-lo rir com memórias de divertidas aventuras passadas juntos, dancei para ele ao som de uma música tradicional das Astúrias, abri o velho piano (um tanto ou quanto desafinado) da avó e interpretei, no que tentei ser o meu melhor, Diana Krall. De vez em quando, consigo que lhe aflore ao rosto um sorriso. Isso é, para mim, felicidade! Infelizmente, dura pouco... muito pouco. Logo, logo, estou sentada à sua beira, a afagar-lhe a testa e o que resta dos seus cabelos, outrora sedutoramente fartos e negros. Beijo-lhe os olhos, seco-lhe os suores e as lágrimas e digo disparates "tonterías, si...", rimo-nos, então, os dois, por um momento, damos as mãos, apertamo-las como se pela primeira vez, e os nossos olhos interpenetram-se até sentirmos que conseguimos atingir a alma um do outro.

O meu amigo está doente. Sou médica, sou humana, sou amiga. Infelizmente não possuo poderes divinos. Noite após noite dou comigo a perguntar: poderá algum deus, se existir, fazer o que não consigo? E. mesmo não sendo crente, será que se eu pedir aos deuses todos, ou a um de tantos que há para escolher, para libertar o meu amigo desta doença, ele me ouvirá?

De retorno, oiço o silêncio. Apenas. Pelos vistos, não há respostas para perguntas que não se podem fazer...

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Ainda, e sempre, Yeats



THE LOVER TELLS OF THE ROSE IN HIS HEART

All things uncomely and broken, all things worn out and old,

The cry of a child by the roadway, the creak of a lumbering cart,

The heavy steps of the ploughman, splashing the wintry mould,

Are working your image that blossoms a rose in the deeps of my heart.



The wrong of unshapely things is a wrong too great to be told;

I hunger to build them anew and sit on a green knoll apart,

With the earth and the sky and the water, re-made, like a casket of gold

For my dreams of your image that blossoms a rose in the deeps of my heart.

W. B. Yeats

__________________________________________________________



O AMANTE DIZ DA ROSA NO SEU CORAÇÃO

Tudo quanto é feio, destruído, todas as coisas gastas, velhas,

o grito de uma criança à beira do caminho, o rangido de uma carroça que se arrasta,

O pesado andar do lavrador , passo a passo sobre o limo invernal,

Maculam a tua imagem que engendra uma rosa no fundo do meu coração.



Tão grande é a mácula das coisas torpes que não pode ser descrita;

A minha ânsia é tudo reconstruir e sentar-me num verde outeiro solitário,

Com a terra, o céu, a água renovados, como um cofre de ouro

Para os meus sonhos da tua imagem que floresce numa rosa tão profundamente no meu coração.



Tradução de José Agostinho Baptista

domingo, 6 de janeiro de 2008

Diga 33!


"Uma mulher de trinta anos tem atractivos irresistíveis. A mulher jovem tem muitas ilusões, muita inexperiência. Uma nos instrui, a outra quer tudo aprender e acredita ter dito tudo despindo o vestido. (...) Entre elas duas há a distância incomensurável que vai do previsto ao imprevisto, da força à fraqueza. A mulher de trinta anos satisfaz tudo, e a jovem, sob pena de não sê-lo, nada pode satisfazer".
Honoré de Balzac in "A mulher de trinta anos"



Aproxima-se, a passos largos, a data do meu 33º aniversário. Não dá para acreditar! Olho para trás e o que vejo? A minha vida feita de pequenos-grandes nadas do passado e minúsculos nadas do presente...
Como posso contentar-me com uma vida dividida entre o hospital (onde me esqueço de mim e me entrego a quem precisa...) e os "meus momentos", na casa do Alto do Monte, cheios de recordações de entes queridos (demasiados fantasmas, eu sei) e um ser humano... - assumamos que sim -, o meu gato Nanú, por companhia. Os livros, claro, o calor da lareira que me aquece o corpo e um copo de porto que ajuda a aquecer a alma. A música de fundo... sempre... quase sempre a mesma, também! Estarei a envelhecer precocemente por ausência de vida social, de família? Estarei a sofrer as consequências de ter optado pela independência, pela autonomia, por este isolamento de eleição?

Sorrio interiormente quando me apercebo de que o velho "diga 33" do João Semana e outros médicos, esses reais, do passado, voltou a estar na moda entre os meus actuais colegas de profissão. Eu não aderi, utilizo outros métodos para obter informação idêntica. Porque o "33" lembra-me os anos de vida que vou ter em breve e, honestamente, esse pensamento quase me martiriza...

Mas eu não tenho o que quero? Não sou o que sempre ambicionei? Não tenho a liberdade por que sempre lutei?

A verdade é que tenho e sou essa Mafalda que quis. Agora, que a tenho inteiramente, já não sei se era mesmo o que queria... ah! a dúvida metódica, a recorrente incerteza relativa ao ideal de felicidade (de satisfação, pelo menos!).

Admito, (não tenho como não o fazer) que, por vezes, me sinto profundamente triste e só. Chego a ponderar a possibilidade de lamentar as decisões tomadas para a minha vida mas, depois, penso: "também, com o que me foi oferecido, não existiam muitas outras opções"... e tento confortar-me com esse pensamento... de acomodação, de alguém que, demasiado cedo na vida, se rende às evidências e baixa os braços, por falta de ânimo para "fazer acontecer" de outra forma.

Chego a chorar: escondida do mundo, sentada no cadeirão frente à lareira, com o Nanú no meu colo. Pena de mim? Não, não tenho. Não quero nem posso ter. Devo-me a dignidade de não deixar que isso me suceda!

Gosto tanto de viver! Gosto tanto das coisas que me rodeiam, do que leio, do que ouço, do que vejo, do que aprecio... será que me falta apenas alguém com quem partilhar? Alguém especial, claro, porque "alguéns" candidatos a isso não me têm faltado! (Por que razão eu, liminarmente, os afasto? Será porque ainda nenhum apareceu com o tal letreiro de "eu sou o especial?") ... deve ser isso! Caramba!... um dia destes sou velha, o Nanú, que também não vai para novo, desaparece, e eu fico mesmo sozinha, nesta velha casa, onde o vento nunca pára de soprar e de fazer-se ouvir nas frestas das portadas e das janelas!

Bom... amanhã começa uma nova semana! Vou ter muitos doentes com que me ocupar durante todos os dias da mesma e pouco tempo para meditar nesta vida pequena, pobre, só, que escolhi viver! Além do mais... isto pode mudar de repente, não é? Depende, acima de tudo, de mim, da minha vontade de voltar a conviver, a socializar (como dizem por aí...), a mudar de registo!

Está bem... veremos... tenho que fazer um esforço para saír desta letargia que me leva a fechar-me no meu canto e a recusar novos desafios e oportunidades. Vendo bem as coisas... ainda nem tenho trinta e três... amanhã, segunda-feira, dia 7 de Janeiro de 2008, para provar a mim própria que todos estes medos não passam de um absurdo, vou pedir ao primeiro doente que me apareça no consultório: "diga 33!"... ah,ah,ah!

Espero voltar, em breve, com novidades alegres e interessantes! Trust me! ;

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Votos de Bom Natal


O meu gato Nanu escolheu esta fotografia, da nossa decoração própria da época que atravessamos (com a qual ele tanto gosta de brincar) para que eu aqui viesse deixar aos nossos amigos que passam pelo Vento Agreste os votos de um Bom Natal.

domingo, 16 de dezembro de 2007

Belos e Malditos - F. Scott Fitzgerald

"The Beautiful and Damned" - F. Scott Fitzfgerald e Zelda interpretados no palco

Dando prosseguimento ao desafio que corre por aí, passo a citar a 5ª linha, da 165ª página do livro e do autor acima mencionados.

Assim:

"Deteve-se, lembrando-se de que, quando Anthony partira naquela noite, ela se despira com o ar gelado de Abril entrando pelas janelas."

Aproveito para citar a epígrafe com que F. Scott Fitzgerald inicia este romance autobiográfico:

"O vencedor pertence aos despojos"


terça-feira, 27 de novembro de 2007

O estigma da solteirona


Afirmava a personagem Carrie, interpretada por Sarah Jessica Parker, em "O Sexo e a Cidade", no episódio em que completou 35 anos: "A partir de hoje sou, oficialmente, solteirona" e, dito isto, parecia que o céu tinha desabado sobre a sua cabeça.

Dá que pensar!... Numa sociedade em que a mulher adquiriu, finalmente, o estatuto que lhe pertence, em termos de direitos e deveres, como pode o "estigma da solteirona" continuar a fazer-se sentir de forma tão opressiva e desesperante?

Se a mulher conseguiu, de facto, a independência a todos os ní­veis, desde o sexual ao profissional e ao económico (os dois últimos intrinsecamente ligados, de resto), desiderato há séculos desejado, por que razão teima em deixar-se envolver emocionalmente em conceitos totalmente ultrapassados, que já não se lhe aplicam, portanto?

Ou será que esta verdade não é tão verdadeira assim?

Eu não me sinto solteirona aos 32 e acredito que não irei senti-lo, de repente, como se de um sortilégio se tratasse, aos 35. Nem aos cinquenta!... Isso significaria que estava a renegar tudo aquilo por que gerações e gerações de mulheres (e alguns homens, admitamos) antes de mim, lutaram!

É claro que isto não significa que eu não sinta necessidade de ter um par amoroso ou de vir a constituir família, mas isso pelas razões certas, que são as afectivas, que são as naturais. Pouco ou nada me importam as convenções sociais, decrépitas e obsoletas. Uma mulher não tem que provar ao mundo que é "capaz de agarrar um homem". Ninguém pertence a ninguém. Nenhum homem é mais "gente" do que uma mulher, ou vice-versa. As pessoas devem ficar juntas, e amar-se, de livre vontade, porque querem, porque se sentem bem dessa forma, nunca por imposições externas, jamais para satisfazer a opinião pública.

E se, um dia destes, ouvirem dizer que me casei, não fiquem admirados. Sou muito bem capaz de formalizar uma união, dessa forma tradicional, não porque quero deixar de ser "solteirona" mas porque, finalmente, surgiu alguém que quero ter ao meu lado, com quem talvez venha a ter filhos... enfim, não será um D. Sebastião que se materializa junto a mim, numa manhã de nevoeiro... será um homem com quem, conscientemente e fundamentada em razões do coração, pretendo partilhar a minha vida.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

De boas intenções...

Dizia eu, no post anterior, que iria contrariar o velho ditado e que as minhas (boas) intenções de visitar os sítios dos meus amigos virtuais (e lá comentar), e de aqui vir escrevinhar umas coisitas com maior assiduidade, eram para ser cumpridas.
Tretas, meus amigos. Tudo tretas. Ao cabo e ao resto, já lá vão praticamente três semanas desde que andei por estas bandas.

Temas de que falar não me faltam, mas o Juramento de Hipócrates, que faço questão de seguir escrupulosamente, obrigar-me-ia a ficcionar, a alterar substancialmente o que vos contasse, para que não houvesse qualquer possibilidade de quebra de sigilo da minha parte e, em consequência, de identificação de casos reais. Como os meus amigos bem sabem, para isso não tenho jeito. Não sou detentora de dotes de romancista. Nem de poeta. Em ambos os casos, para tristeza minha... porque sou grande apreciadora da arte da escrita. Ai, ai!... Enfim!...

Resta-me, então, falar de mim, da minha vidinha por vezes tão "sem-graça" (para não dizer "desgraçada", porque não vos quero pôr a chorar - snif, snif, snif... - agora, num arremedo à la Florbela Espanca: "bem bastam as enchentes dos rios formados pelas minhas lágrimas!"). Uau! Esta deixou-me de rastos! (risos).

Pronto, já respirei fundo, e agora, ainda a propósito desta profissão pela qual em boa hora optei, tento deixar um pouco de humor, para que a minha passagem de hoje por aqui não pareça tão cheia de coisa nenhuma. (Se não conseguir, talvez desista... sei lá, ou talvez não, sei eu lá disso agora!)

Bom, mas vamos à "suposta" piada:

Sabem o quanto sofriam os meus colegas até ao Séc. XIX, antes de ter sido inventado o estetoscópio?
Ora apreciem-me bem esta ilustração:


Caricatura de Draner, pseudónimo de Jules Renard (1833-?) in "Le Charivari: Variations médicales" (1880-1890). Fonte: History of Medicine Division. © National Library of Medicine.

Tradução da legenda:

" Eu achava, doutor, que era nas costas que se auscultava..."
" Para os peitos fracos, sim... mas não é o seu caso."

"Deliciosa a vida dos físicos (prodigiosos ou não) do passado mais remoto!", pensarão alguns dos meus amigos, olhando apenas o lado sensorialmente agradável da questão...
(seus malandrecos!!!).

Com esta me vou, que se faz tarde, e o estado de "sem-graça" continua...