terça-feira, 8 de abril de 2008

Porque afinal existem...


Pedi à minha amiga Maria Carvalhosa que me emprestasse uma fotografia das suas rosas-sem-espinhos porque, após tão prolongada dor e consequente silêncio, necessitava de recomeçar a escrever tendo por inspiração uma imagem leve, fresca, alegre. Pensei em rosas, mas logo visualizei os seus terríveis espinhos, que ainda sinto cravados bem fundos na pele, a dilacerar a carne, tão recente a sua memória. Foi então que me lembrei das rosas da Maria, dessa raríssima espécie de roseira, tão importante na vida dela e que hoje me apetece aqui evocar.

Preciso de dizer que o meu amigo partiu? Não creio. Nem vou falar disso a não ser para dizer que, na última e sentida homenagem, muitos amigos se lhe reuniram, apesar do dia cinzento, chuvoso e ventoso que foi o de ontem, uma das mais escuras e desagradáveis segundas-feiras deste ano. Ele teria gostado de os ver, de comprovar que o afecto não é um sentimento vão, que a amizade verdadeira se mostra em toda a sua plenitude quando quem morre conheceu o seu significado e viveu em função dele.

Agora uma novidade: eu, que não sou de escrever poemas, dei por mim a rabiscar um texto diferente dos meus escritos habituais. Por causa das rosas-sem-espinhos, certamente, saíram-me há pouco as palavras que aqui reproduzo e me atrevo a incluir na categoria poética (sem falsas modéstias, embora também sem pretensões):

Primeiro Beijo

Pela estreita vereda
corríamos de mãos dadas.
Na quente tarde estival
deixávamo-nos embriagar
pela vasta mescla de cheiros
a frutos, a flores silvestres,
e ríamos como loucos.
Éramos jovens.
Dentro de nós, ao olhar o sol
prestes a esconder-se
atrás de um pico da serra,
a vida acontecia como nunca antes,
e aquele era um momento de euforia,
de celebração de um sentimento
partilhado, sem palavras, em perfeita cumplicidade.
De repente, à nossa beira,
amoras negras e maduras
pediam que as saboreássemos.
Como resistir?
Tu colhias os frutos e,
com as mãos a ficarem tingidas de roxo,
depositavas na minha boca ávida
uma mão cheia do delicioso néctar.
Eu sorria e o meu sorriso ía ficando da cor das tuas mãos:
"Vá, assim não vale, também quero
ver o teu sorriso de amora".
Não te custava satisfazer-me. Eu sei.
Em breve, estávamos repletos de nódoas,
sujos de poeira, arranhados pelas silvas,
mas continuávamos a rir como se o mundo
fosse ficar assim para todo o sempre.
Numa curva do carreiro,
as rosas amarelas, sem espinhos,
faziam vergar o arbusto, de tão carregado
de flores abertas e botões a despontar.
Apanhaste um ramo,
prendeste-mo na trança negra,
que, já despenteada, pendia sobre o meu peito
do lado esquerdo, mesmo sobre o coração.
Sempre sem largarmos as mãos,
afastaste-te um pouco:
o suficiente para ver o efeito
do adorno com que me enfeitaras.
Disseste "és linda".
Eu acreditei.
Puxaste-me, então, para ti.
Encostámos, ao de leve, os nossos lábios
pintados de roxo, com as faces a arder
e o eco, em uníssono, da emoção a pulsar.