sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Votos de Bom Natal


O meu gato Nanu escolheu esta fotografia, da nossa decoração própria da época que atravessamos (com a qual ele tanto gosta de brincar) para que eu aqui viesse deixar aos nossos amigos que passam pelo Vento Agreste os votos de um Bom Natal.

domingo, 16 de dezembro de 2007

Belos e Malditos - F. Scott Fitzgerald

"The Beautiful and Damned" - F. Scott Fitzfgerald e Zelda interpretados no palco

Dando prosseguimento ao desafio que corre por aí, passo a citar a 5ª linha, da 165ª página do livro e do autor acima mencionados.

Assim:

"Deteve-se, lembrando-se de que, quando Anthony partira naquela noite, ela se despira com o ar gelado de Abril entrando pelas janelas."

Aproveito para citar a epígrafe com que F. Scott Fitzgerald inicia este romance autobiográfico:

"O vencedor pertence aos despojos"


terça-feira, 27 de novembro de 2007

O estigma da solteirona


Afirmava a personagem Carrie, interpretada por Sarah Jessica Parker, em "O Sexo e a Cidade", no episódio em que completou 35 anos: "A partir de hoje sou, oficialmente, solteirona" e, dito isto, parecia que o céu tinha desabado sobre a sua cabeça.

Dá que pensar!... Numa sociedade em que a mulher adquiriu, finalmente, o estatuto que lhe pertence, em termos de direitos e deveres, como pode o "estigma da solteirona" continuar a fazer-se sentir de forma tão opressiva e desesperante?

Se a mulher conseguiu, de facto, a independência a todos os ní­veis, desde o sexual ao profissional e ao económico (os dois últimos intrinsecamente ligados, de resto), desiderato há séculos desejado, por que razão teima em deixar-se envolver emocionalmente em conceitos totalmente ultrapassados, que já não se lhe aplicam, portanto?

Ou será que esta verdade não é tão verdadeira assim?

Eu não me sinto solteirona aos 32 e acredito que não irei senti-lo, de repente, como se de um sortilégio se tratasse, aos 35. Nem aos cinquenta!... Isso significaria que estava a renegar tudo aquilo por que gerações e gerações de mulheres (e alguns homens, admitamos) antes de mim, lutaram!

É claro que isto não significa que eu não sinta necessidade de ter um par amoroso ou de vir a constituir família, mas isso pelas razões certas, que são as afectivas, que são as naturais. Pouco ou nada me importam as convenções sociais, decrépitas e obsoletas. Uma mulher não tem que provar ao mundo que é "capaz de agarrar um homem". Ninguém pertence a ninguém. Nenhum homem é mais "gente" do que uma mulher, ou vice-versa. As pessoas devem ficar juntas, e amar-se, de livre vontade, porque querem, porque se sentem bem dessa forma, nunca por imposições externas, jamais para satisfazer a opinião pública.

E se, um dia destes, ouvirem dizer que me casei, não fiquem admirados. Sou muito bem capaz de formalizar uma união, dessa forma tradicional, não porque quero deixar de ser "solteirona" mas porque, finalmente, surgiu alguém que quero ter ao meu lado, com quem talvez venha a ter filhos... enfim, não será um D. Sebastião que se materializa junto a mim, numa manhã de nevoeiro... será um homem com quem, conscientemente e fundamentada em razões do coração, pretendo partilhar a minha vida.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

De boas intenções...

Dizia eu, no post anterior, que iria contrariar o velho ditado e que as minhas (boas) intenções de visitar os sítios dos meus amigos virtuais (e lá comentar), e de aqui vir escrevinhar umas coisitas com maior assiduidade, eram para ser cumpridas.
Tretas, meus amigos. Tudo tretas. Ao cabo e ao resto, já lá vão praticamente três semanas desde que andei por estas bandas.

Temas de que falar não me faltam, mas o Juramento de Hipócrates, que faço questão de seguir escrupulosamente, obrigar-me-ia a ficcionar, a alterar substancialmente o que vos contasse, para que não houvesse qualquer possibilidade de quebra de sigilo da minha parte e, em consequência, de identificação de casos reais. Como os meus amigos bem sabem, para isso não tenho jeito. Não sou detentora de dotes de romancista. Nem de poeta. Em ambos os casos, para tristeza minha... porque sou grande apreciadora da arte da escrita. Ai, ai!... Enfim!...

Resta-me, então, falar de mim, da minha vidinha por vezes tão "sem-graça" (para não dizer "desgraçada", porque não vos quero pôr a chorar - snif, snif, snif... - agora, num arremedo à la Florbela Espanca: "bem bastam as enchentes dos rios formados pelas minhas lágrimas!"). Uau! Esta deixou-me de rastos! (risos).

Pronto, já respirei fundo, e agora, ainda a propósito desta profissão pela qual em boa hora optei, tento deixar um pouco de humor, para que a minha passagem de hoje por aqui não pareça tão cheia de coisa nenhuma. (Se não conseguir, talvez desista... sei lá, ou talvez não, sei eu lá disso agora!)

Bom, mas vamos à "suposta" piada:

Sabem o quanto sofriam os meus colegas até ao Séc. XIX, antes de ter sido inventado o estetoscópio?
Ora apreciem-me bem esta ilustração:


Caricatura de Draner, pseudónimo de Jules Renard (1833-?) in "Le Charivari: Variations médicales" (1880-1890). Fonte: History of Medicine Division. © National Library of Medicine.

Tradução da legenda:

" Eu achava, doutor, que era nas costas que se auscultava..."
" Para os peitos fracos, sim... mas não é o seu caso."

"Deliciosa a vida dos físicos (prodigiosos ou não) do passado mais remoto!", pensarão alguns dos meus amigos, olhando apenas o lado sensorialmente agradável da questão...
(seus malandrecos!!!).

Com esta me vou, que se faz tarde, e o estado de "sem-graça" continua...

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Porque também há o rio!...

É isso mesmo. Por muito que o trabalho nos ocupe não podemos deixar que seja a única razão da nossa existência. É comum pensar-se que os "trabalhólicos" só o são porque não conseguem descortinar outras fontes de interesse. Nesse caso, atribui-se-lhes alguma tacanhez intelectual, falta de imaginação, inépcia, ausência de sensibilidade. Em alternativa, levam um rótulo de pessoas de fraca personalidade e temperamento tendencialmente tímido, que os pode levar a refugiarem-se no trabalho como desculpa para a ausência de convivência social, ou outras.
Não me reconheço em nenhum destes quadros. Não é novidade que gosto do meu trabalho mas, ao mesmo tempo, gosto tanto de outras coisas. De não fazer nada, por exemplo. Pode ser delicioso, nalgumas alturas da vida. De ler, de escrever, de passear, de estar com os amigos, de namorar...


Admito que tem sido um pouco preocupante esta minha entrega (quase) total ao trabalho mas, convenhamos, quem teve dois meses seguidos de férias tem que "dar o litro" para compensar. É o que tenho feito. Tenho dado litros e litros. Apercebi-me de que já posso fazer uma pausa; dar uma folga a mim própria; permitir-me fazer o que me dá prazer.

Vou recomeçar a visitar os blogues dos meus amigos e a comentá-los, pôr alguma leitura em dia, escrever com maior regularidade, passear sempre que possível, nem que seja nas margens do meu rio ou pelas colinas da minha serra, saír com os amigos, despreocupadamente, namorar, se me aparecer alguém com quem valha a pena... ;)

"De boas intenções está o inferno cheio" diz o povo. Estou, sinceramente, decidida a fazer cumprir a declaração de intenções que acabei de enumerar. Não quero envelhecer precocemente e, um dia, olhar para trás, à procura de quem fui, do que fiz, de alguma memória que me traga felicidade, e só encontrar imagens ligadas à minha profissão que, por natureza, apesar de algumas compensações, dão-me a ver essencialmente pessoas doentes, tristes, camas de hospital ocupadas por quem precisa de cuidados especiais ou, subitamente, vazias porque quem as ocupou já não faz parte do mundo dos vivos... é a vida, é a morte, sim. Mas não pode ser só isso...

Esta conversa está a ficar demasiado sorumbática. Quero rir, quero soltar o meu lado mais alegre e sadio e fruí-lo, como um bem a não perder. Nunca. Quero apanhar um braçado de flores e perfumar toda a casa.



Até breve, amigos, aqui ou nos vossos sítios.

domingo, 30 de setembro de 2007

Regresso a Casa


Agora que já assentei e tomei consciência de que estou de volta, concedo-me um tempinho para vir aqui e contar como foi regressar à minha montanha, à minha casa onde, pela primeira vez, retorno e não encontro os braços abertos da minha avó, prontos para me apertar bem contra ela e me cobrir de beijos.


Felizmente fui buscar o Nanu no caminho para casa. Entrámos, assim, os dois no nosso canto, a fazer de conta que a solidão não existe, como se sempre tivesse existido este vazio imenso deixado pelos que foram partindo para sempre.

O Nanu está óptimo e não parece ter sentido muito a minha falta. Nem sequer se manifestou de alegria quando cheguei a casa da Teresa para o ir buscar!!! Também não me rejeitou, o que não foi mau, tendo em conta que, segundo a minha amiga, se integrou perfeitamente em casa dela e estabeleceu sérios laços de amizade com os gatos que lá habitam. Principalmente com a Kika, por quem deve ter tido uma paixoneta... coisa passageira... coisa de bichos felinos! Quando chegou a casa já a reacção foi bem diferente... correu para a sala onde tem o seu cesto e se encontravam todos os seus pertences (bonequinhos de peluche, a sua mantinha, a almofada fofa e cheirosa como nenhuma outra). Enroscou-se e logo começou o "ron-ron", sinal inegável de que, finalmente, tinha encontrado a sua casa, estava a salvo dos perigos do mundo e podia dormir o sono dos justos. Noite fora, veio ter comigo ao quarto e saltou para a minha cama. Ajeitou-se à procura de um contacto comigo, através da roupa, e, tendo encontrado uma perna, a ela se encostou e retomou o som de regozijo. Se eu soubesse fazer "ron-ron" teria feito coro com ele, de tão feliz que fiquei por ele me ter procurado. Agora sim, tudo estava no seu lugar: ao reencontrar o seu aconchego, o Nanu fez-me reencontrar o meu.

A Serra está linda e com os primeiros sintomas de Outono. Nas (poucas) manhãs ou tardes livres, tenho vindo para o jardim, sentar-me a ler no meu banquinho de sempre. Felizmente o vento não se tem feito sentir e o harmonioso conjunto de buganvílias e hibiscos floridos, de variadas cores, apazigua-me a alma, conforta-me e faz-me sentir que pertenço a este lugar, por muitos outros que venha a conhecer (e a amar) ao longo da vida.

No hospital esperavam-me responsabilidades acrescidas e maior volume de trabalho. Tudo bem! Dêem-me condições que eu enfrento tudo com alegria e vontade!... Tive que deixar para trás os Centros de Saúde, tendo ficado apenas com duas manhãs de consultas na aldeia próxima de casa, onde fiz a escola primária e com a qual tenho maiores ligações afectivas.

O Pedro, meu namorado de há algum tempo e que o foi até eu ir de férias, conseguiu transferência para o Hospital de S. João, no Porto. Curiosamente, ou, talvez, expectavelmente, não sinto a sua falta. Tenho tanto com que me ocupar e, nas longas férias que finalmente tive, aprendi algumas coisas sobre os sentimentos que nos ligam às pessoas em diferentes situações. Não, decididamente, ele ainda não era o "Amor da minha Vida". Será que toda a gente tem um?


Termino com esta interrogação, para a qual poderei nunca vir a encontrar resposta.
Uma coisa é certa: sei o que é gostar de alguém, apreciar a sua companhia, fruir o tempo passado a seu lado.


Tanto me basta, por agora.


quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Novos lugares de afecto

Toda a gente tem fotografias da Ponta da Piedade. Esta até podia ser um postal ilustrado, mas não é... foi tirada por mim que, pela primeira vez, estive naquele sítio abençoado pelos deuses.
Andei por terras algarvias, é verdade. Experimentei aquela salgada e morna água do mar e deixei-me ir ficando, até se me colocar a hipótese de me fartar. Não me fartaria nunca, é um facto, mas a vida não pode ser só "bem bom", para utilizar uma expressão dos nossos irmãos brasileiros... há que trabalhar, que produzir, que contribuir para esta sociedade já de si tão mal-tratada pelos sucessivos governantes... na área da Saúde, então, nem é bom falar nisso... toda a gente já sentiu "na pele" as deficiências e insuficiências do sistema nacional. Além do mais, eu gosto muito do que faço e comecei a sentir a falta dos meus doentes, mesmo dos que ainda não conheço, mas que poderiam estar a precisar de mim, caso continuasse ausente por mais tempo.
Voltando um pouco atrás, às férias, "algarviei", sim senhor, mas também me deixei seduzir pela Costa Vicentina, onde acabei por ficar mais tempo do que no Algarve. Apaixonei-me por Porto Côvo, pelas suas praias, pelo seu farol e pela encantandora Ilha do Pessegueiro. Na praia em frente desta oferenda da natureza passei muitas horas, fora mas, principalmente, dentro de água. Nadei até mais não poder... chegava ao fim do dia cansada, mas feliz. Sempre gostei da música do Rui Veloso dedicada àqueles lugares mas, a partir destas férias, sempre que a ouvir, vou saber , vou sentir do que está a falar. Passou a existir, em mim, uma nostalgia doce e bonita em relação a Porto Côvo: sítio e música. É bom poder coleccionar lugares de afecto (sei que há alguém que leio, aqui na blogoesfera, que costuma utilizar essa expressão com frequência, porque é, ela própria, uma pessoa de lugares, não me recordo de quem, mas agora posso perceber que ter esse sentimento é ter um tesouro, muito mais importante do que acumular riquezas materiais).
Visitei faróis lindíssimos para além do de Porto Côvo (um sonho antigo tornou-se realidade e excedeu as expectativas): o do Cabo de S. Vicente, o do Cabo Sardão... mas não vou encher este espaço de fotografias de tudo o que me encantou. O de Porto Côvo (mais uma vez, talvez pela magia da hora a que a fotografia foi tirada e pela memória da presença da pessoa a meu lado) é o eleito para ilustrar a emoção.


Sim, uma pessoa a meu lado. Contrariamente ao que se possa pensar, não andei sempre sozinha. Parti só, é verdade, mas isso provavelmente permitiu e funcionou como um elemento facilitador do encontro com outras pessoas. Viajar é excelente. Conhecer gente durante as viagens faz parte da aventura. Criar, com elas, laços de amizade (ou outros, quiçá) é um acréscimo muito gratificante.
Voltei à Casa do Alto do Monte com uma nova visão do que me rodeia, dos outros e de mim própria. Sinto-me revigorada. Quase poderia dizer, se não soasse a exagero, renascida.
E cá estou, preparada para um novo ano de trabalho árduo, com energia de sobra para o enfrentar. Do que se passou, dentro e fora de mim, ao regressar a casa, voltarei um dia destes para contar.

segunda-feira, 30 de julho de 2007

Da Irlanda para o Algarve

Leda and the Swan by W.B.Yeats

A sudden blow: the great wings beating still
Above the staggering girl, her thighs caressed
By his dark webs, her nape caught in his bill,
He holds her helpless breast upon his breast.

How can those terrified vague fingers push
The feathered glory from her loosening thighs?
How can anybody, laid in that white rush,
But feel the strange heart beating where it lies?

A shudder in the loins, engenders there
The broken wall, the burning roof and tower
And Agamemnon dead.
Being so caught up,
So mastered by the brute blood of the air,
Did she put on his knowledge with his power
Before the indifferent beak could let her drop?

A família Yeats legou à Irlanda, em particular, e ao mundo, em geral, um fabuloso espólio artístico. Desde o pai, John Butler Yeats, escritor mas, acima de tudo, famoso pintor, de que os retratos são a sua mais conhecida forma de expressão artística, ao inigualável poeta W.B.Yeats, percursor da nova poesia irlandesa, sem rima, com marcadas influências do seu grande amigo Ezra Pound, com quem era mantida correspondência assídua, de ambos os lados do oceano.

Retrato de W.B. Yeats, da autoria de seu pai, John Butler Yeats - 1906


Já o irmão mais novo de Williams, Jack Butler Yeats, sempre demonstrou maior vocação para a pintura, tal como o pai, sendo considerado o expoente dos pintores modernistas da Irlanda, tendo inclusivamente sido conotado com a escola expressionista.

Jack Butler Yeats, (Atlantic Drive), 1944, The Hunt Museum, Limerick


Jack Butler Yeats (My beautiful, my beautiful) - 1953

Da bela Irlanda levo imagens que, para sempre, ficarão comigo. Também o meu imaginário ficou mais saciado, após esta visita em que procurei aprofundar, tanto quanto possível, as raízes celtas que tanto me fascinam, a lendária e mítica história da ilha de onde Isolda partiu para casar com o Rei Marco e afinal, da sua paixão com Tristão, nasceu uma das mais belas histórias de amor da cultura Ocidental :

"Frisch weht der Wind der Heimat zu, mein Irish Kind, wo weilest du?" (Tristan und Isotte, Wagner - frase citada no poema "The Waste Land" de T.S. Elliot).

Ilha de grandiosos escritores, cuja escrita já me acompanhava, mas que agora julguei entender um pouco melhor, de Jonathan Swift a Samuel Becket, passando pelo incomparável James Joyce e por George Bernard Shaw.

Pois é, mas tenho mesmo que rumar a terras algarvias (o contraste térmico até poderá ser interessante... além do mais vou ter oportunidade de nadar no mar, finalmente. Sim, porque nesta terra não me atrevi a fazer mais do que molhar os pés nas águas fresquinhas, fresquinhas... e mesmo assim ficava com eles enregeladinhos!!!) mas a verdade verdadeira é que, embora os irlandeses funcionem com euros, como nós, os euros aqui custam bastante mais dinheiro do que em Portugal. Refiro-me aos "comes e bebes", aos alojamentos, enfim a tudo aquilo em que é mesmo preciso gastar dinheiro... sei que no algarve também não é barato, mas quem viaja de Dublin para Faro consegue ter férias muito mais económicas do que se fosse de qualquer ponto do nosso País. É triste, mas é verdade. Nem vos digo quanto vou pagar por estas férias num aldeamento "top class", com tudo incluído. Parece-me vergonhoso que um estrangeiro precise de dispender apenas cerca de 1/4 do que um portuguesinho de gema, nas mesmas condições, tem de gastar... Enfim, as injustiças desta nossa sociedade (mercado único, união europeia, livre circulação de pessoas e bens, fariam prever condições de subsistência e até de férias, - porque não? - naturalmente idênticas, não era?) MAS NÃO É!

Claro que não vou endireitar o mundo nem me vou armar em mártir, portanto, como qualquer português feito esperto, vou aproveitar, já que estou aqui!... (seria honesta, ficaria de bem com a minha consciência, etc. e tal, mas seria uma parva, e, pior do que isso, arrepender-me-ia todos os dias se não o fizesse, não é verdade?).

Amanhã vou, então, direitinha da Ilha Verde para o Algarve escaldante. Chegam-me notícias de que o calor em Portugal está insuportável, mas, apesar de não ser propriamente uma "indigente", o meu "pé-de-meia" para as férias já não me permite continuar por mais tempo neste fresco e verde paraíso, onde tive a oportunidade de conhecer paisagens deslumbrantes, enriquecer os meus parcos conhecimentos sobre a herança celta e a mais recente cultura irlandesa e, para meu espanto, descobrir que na Irlanda existem muitos corvos. A sério! E não é só à beira-mar... é por todo o campo, que é como quem diz, relembrando a amiga Bettips, countryside. Vamos por uma estrada, entre uma cidade e outra, por exemplo e, à porta de cada casa, de ambos os lados da estrada, está postado um corvo verdadeiro. Tipo cão-de-guarda... será um corvo de guarda? Adorei esta particularidade, a juntar a todas as outras que vim referindo ao longo dos posts que nesta ilha de sonho, onde o fantático e o real chegam a confundir-(se)-me, consegui arranjar algum tempo para escrever.

Talvez dê notícias da minha estadia do lado de cá de Marrocos, se me sobrar algum tempo fora de água... senão... até um dia destes, de onde voltarei ao Vento Agreste para pôr a escrita em dia, lá do alto da minha montanha.

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Limerick

Combinei encontrar-me com um amigo espanhol, que também anda em viagem por estas bandas, na cidade de Limerick. Desde há muitos anos que desejava conhecer este local, por nenhuma outra razão que não fossem os poemas com o mesmo nome, que fizeram as minhas delícias desde que comecei a conhecer alguma literatura de língua inglesa e me deparei com essas preciosidades. Poemas de cinco versos, têm a particularidade de fazer com que o último introduza a surpresa e a comicidade dessa popular forma poética. Não resisto a partilhar o meu limerick preferido:

There was a youg squire from Japan
whose verses just never would scan
when asked why this was
he replied "it´s because
I always try to fit as many words into the last line as ever I possibly can"


Para minha decepção, na cidade de Limerick não nos deparamos com jovens poetas a declamar limericks nas esquinas das ruas, nem se vêem limericks grafitados nas paredes, nem as livrarias se encontram a abarrotar de livros de limericks.
É uma cidade bonita, apesar dessa lacuna imperdoável.
Ontem á tarde fui saír com o meu amigo: vagueámos pelas ruas da cidade, observámos curiosas fachadas coloridas, fortemente constratantes nalguns prédios antigos, entrámos em tudo quanto era livraria (pois claro!) e fomos visitar o famoso castelo de St. John.
Sempre entretidos na conversa, já tinha anoitecido quando nos lembrámos que não tínhamos comido nada desde a hora do almoço, que tinha sido bastante frugal, no meu caso.
Debandámos então para a zona dos restaurantes à procura de um onde pudessemos saciar o apetite que começava a fazer-se notar fortemente.
Passava um pouco das nove quando enfiámos pela principal rua onde é suposto "dar-se ao dente". Entrámos num. Surpresa das surpresas: não era restaurante. Ou antes, tinha sido até há bem pouco tempo mas, a partir das nove, tinha virado bar e só vendiam bebidas. Comidinha, que é boa, nada.
Entrámos e saímos de um segundo com a mesma desagradável mensagem: "Sorry, no food. Drinking only".
Ao fim de termos tentado uma meia-dúzia, perdi a vergonha e, no último restaurante onde entrámos, perguntei a uma jovem irlandesa com ar simpático se não nos arranjaria, pelo menos, um pouco de pão para comer. Ela sorriu, com ar de quem poderia fazer a sua boa acção do dia e dirigiu-se para a cozinha. Foi com um sorriso idêntico que voltou, mas com uma informação terrível: "So sorry, I just thought there was some bread left but... someone must have taken it home. Sorry..." e fez um barulhinho com a língua no final como quem diz "coitados, tenho mesmo pena de vocês".
Desalentada, disse ao meu amigo que ía para o bed and breakfast onde estava hospedada e que talvez aí me safasse com o room service. Imediatamente ele me tirou as peneiras: "aqui não há disso, menina. Se queres comer, vais ter que esperar pelo desayuno, amanhã bem cedo."
Sentei-me numas escadas, desesperada com fome, prestes a gritar de raiva. Foi então que o Nacho (ah, esse é o nome dele, ainda não tinha referido) me disse: "sabes que uma pint guiness equivale, em termos calóricos, a um bom bife com ovo a cavalo?" Respondi-lhe, com um sorriso amargo: "no me digas tonterías, hombre".
A verdade é que ignorou a minha displicência, me pegou no braço e me arrastou até ao pub mais próximo. Sentámo-nos ao balcão e começámos por pedir, como é óbvio, "two pints Guiness, please". A cerveja soube bem. Sou fã, como sabem, mas quando cheguei ao fim do primeiro copo continuava a sentir o estômago a reclamar por matéria sólida - comida, mesmo. Queixei-me e imediatamente o meu companheiro de infortúnio pediu mais duas.
Assim continuámos, noite dentro, com algumas idas ao wc para "desbeber". Às tantas, já ríamos por tudo e por nada e tínhamos acabado por esquecer o apetite devorador.
Foi amparada pelo Nacho que reencontrei o caminho para o meu alojamento. Despedimo-nos, com muitos abraços e beijos e risadas, subi ao quarto, e caí "redonda" na cama.
Hoje, às sete da manhã já estava a pé, à porta da sala-de-jantar, esperando ansiosamente que a dona da casa viesse servir o pequeno-almoço. E com que magnífica refeição me presenteou: um típico irish breakfast onde não faltavam as salsichas, o bacon, o feijão, o ovo estrelado, as batatas fritas e sei lá que mais... se alguma vez me tinha passado pela cabeça comer feijão às sete da matina!!! Ai, ai, se a necessidade aguça o engenho, não há como uma barrigada de fome para acabar com as esquisitices... ha, ha, ha... (ainda não consegui parar de rir. O efeito da Guiness dura e perdura!).
Até breve. (ha, ha, ha, ha, ha...)

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Irlanda - frente a frente com os mitos


No meu post "ganhar asas e voar", de 10 de Junho passado, escrevi: "O primeiro sítio onde vou parar há-de ser um que tenha mar... muito mar... quero tanto sentir esse cheiro meu desconhecido que é o da maresia... e dormir ao som das ondas que se desfazem na areia, ou que embatem contra as rochas... . Também gostava de estar numa ilha. Ter a sensação de estar rodeada de água por todos os lados deve ser maravilhoso, inexcedível de prazer... bom, para mim, por enquanto é apenas indescritível, faz parte do meu imaginário desde criança. Esperemos por esse dia..."

E esse dia chegou. Aterrei na Irlanda e fiquei frente a frente com os meus mitos da infância: o do mar, o de estar numa ilha, o de ir à Irlanda procurar os duendes e fadas das histórias que a avó me lia, perder-me em bosques frondosos e encontrar dragões a guardar castelos como os que ela descrevia nas aventuras que contava.

Dublin vista do ar é uma cidade muito bonita. Com toda aquela baía que a abraça. Em terra é uma capital, como imagino que sejam muitas outras, mas com peculiaridades bem ao gosto dos "Dubliners". Lembro-me que, quando li os contos de James Joyce e, mais tarde, vi o filme de John Huston com o mesmo nome, tudo me pareceu sombrio e, até, algo deprimente. Ficou-me desde então a ideia de que o povo que habita aquele sítio ainda hoje assim seria. Nada disso. Dublin é êxtase de vida. De boa comida, de boa bebida, de quotidiano leve e fresco. Fiquei apreciadora da beleza particular do local, da simpatia das gentes, mas, acima de tudo, perdoem-me a momentânea ausência de delicadeza de sentimentos, dos extraordinários petiscos e da inigualável cerveja Guiness...



Desde ontem que estou em Galway, uma estância turística por excelência, com nada mais nada menos que sete lindíssimas praias com bandeira azul. Numa delas, a praia dos Corais, a areia é mesmo formada por mínúsculas partículas de corais que a erosão foi reduzindo, ao longo dos anos, à condição de areal relativamente confortável aos pés. Já a água é uma dor de alma... tão límpida, tão convidativa, mas tão GELADA! Daí a elevada afluência de banhistas que se pode comprovar na fotografia abaixo - em pleno Julho, pico da época balnear!... vá lá, não se riam, disseram-me que há alguns bravos irlandeses que, de longe a longe, vão dar umas braçadas.


Já nesta praia, uns quantos turistas mais afoitos andam na areia, saltitam pelas rochas e até se atrevem a penetrar nas gélidas águas (com fatos impermeáveis ou isotérmicos, nalguns casos, mas não deixam de fazer honras à sua bela praia, limpa e saudável, que orgulhamente ostenta a dita bandeira azul da União Europeia).


No fim de um dia inteiro de excursão pela costa junto a Galway, nada melhor, para terminar a jornada em beleza, do que um relaxante passeio a bordo do "Corrib Princess", um iate turístico que atravessa a cidade de Galway navegando nas calmas águas do rio Corrib. Com sorte, é-nos oferecido um lindo pôr-do-sol, acompanhado por uma brisa um tudo-nada fresca, que aconselha a descida do convés à zona coberta da embarcação, de onde continua a disfrutar-se uma paisagem de encher as medidas a qualquer visitante.

terça-feira, 26 de junho de 2007

Saudades


Está tudo a correr sobre rodas. Neste momento, ultimo os preparativos para a minha viagem. A desejada libertação está apenas a alguns dias de distância. Já fiz o roteiro, de forma grosseira, porque não gosto de planear em demasia. Há lugares-chave que faço questão de conhecer. De resto, muito da viagem será deixado ao sabor do acaso, dos acontecimentos que me levarão aqui ou ali, para que a aura de aventura seja uma constante em cada dia que passa.
Comecei a contagem decrescente. Já sinto um frenesim dos pés à cabeça e um apertozinho no estômago indica que a ansiedade está a aumentar.
Resolvi tudo o que havia para resolver, estou livre e desimpedida. Tenho vindo a dar a notícia aos amigos, calmamente, para que não se criem grandes excitações à minha volta (basta a minha!). O Nanu, o meu gato de estimação, vai ficar em casa da minha amiga Teresa, que tem lá mais dois e é maluquinha por todo o tipo de bichos. Bem entregue, portanto. O pior vão ser as saudades... do Nanu, é claro (e não só... estou a brincar). Vou ter saudades de muita gente, de muitos lugares, dos cheiros, das cores, dos sons do campo, da casa no alto do monte, até do vento eu vou sentir saudades!
Isto é mesmo coisa de portuguesinha! Só mesmo uma pessoa desta terra para ir fazer a viagem da sua vida e, por antecipação, começar a sentir saudades do que vai deixar. Fazer o quê? Somos assim. Eu seguramente que sou, quanto a isso não tenho dúvidas.
A vontade de partir é mais forte, no entanto. Não vão ser pieguices destas que me farão desistir da viagem. E quero crer que quando me apanhar bem longe de tudo o que tem feito parte, até agora, da minha minúscula e desenxabida existência, até estas saudades me vão parecer um pouco ridículas.
(Pelo sim, pelo não, levo uma fotografia do Nanu comigo, como quem leva a imagem de um santo protector. Assim, se me achar perdida no mundo, olho a fotografia com carinho e saudade e dar-se-à o milagre: ela saberá trazer-me, que nem um mapa, ou um sofisticado GPS, de volta ao meu gato, à minha montanha, ao meu aconchego).

domingo, 17 de junho de 2007

O amor, o amor...

Mas, afinal, o que é isso do Amor? Um amigo perguntou-me, muito recentemente, se eu já tinha amado verdadeiramente e se sabia o que era o estado de paixão. Com a maior das sinceridades respondi-lhe que não sabia se o que tinha sentido pelos meus (poucos) namorados tinha, alguma vez, chegado a ser amor. A verdade é que fiquei a pensar no assunto de tal forma que viajei até aos tempos de jovem universitária, quando tive um namorado que, na altura, acreditei amar. Era um bonito rapaz, moreno, de cabelos e olhos negros e um largo sorriso franco. Tinha uma bela figura e adorava dançar. Foi com ele que aprendi a gostar da música tradicional das Astúrias, de raízes claramente celtas, e a executar, com gosto, os passos de dança ritmados, alegres, descontraídos. Éramos a companhia preferida um do outro. Passávamos juntos todo o tempo que podíamos: conversávamos, ríamos, brincávamos como duas crianças. Também passeávamos muitas vezes, de mãos dadas, ou abraçados, pelas ruas da cidade. De repente, parávamos, fosse onde fosse, e beijávamo-nos, como se o mundo fosse acabar no minuto seguinte, por isso chamávamos a essas demonstrações de afecto e desejo "beijos de fim do mundo".



Numas curtas férias roubadas ao estudo, fui com ele conhecer a sua terra, os sítios dos seus encantos (que passaram a ser também dos meus, confesso). Assentámos arraiais em casa dos pais dele, na linda vila medieval de Potes, bem no coração das Astúrias, de onde partíamos todos os dias de manhã para voltar à noite, visitando assim uma boa boa parte dos Picos de Europa. Lugares maravilhosos, tenho que reconhecer. Nessa altura, estou certa disso, sentia-me apaixonada: pela vida, pelo amor, pelo meu rapaz, com quem estava a descobrir as delícias do sexo, do prazer íntimo, em complemento do prazer do que vivíamos juntos, na partilha da contemplação das belezas naturais que visitávamos. Em termos gastronómicos, ele prometeu-me que iria deliciar-me com, pelo menos, três maravilhas locais: a "fabada" (espécie de feijoada à portuguesa, mas com feijões brancos, grandes), a "sidra" (bebida verdadeiramente mágica, desenvolvida pelos druidas dos antepassados celtas e que, ainda hoje, obedece a rigorosos preceitos de manipulação, que se assemelham a um ritual, antes de ser degustada) e o "queso de cabrales" (com um fedor de fugir, mas um sabor equivalente ao melhor manjar dos deuses). Em Fuente Dé andei de teleférico, pela primeira e única vez, e tive uma sensação de liberdade, de plenitude, de qualquer coisa que deverá andar muito próxima daquilo a que chamam felicidade. Enlaçada pela cintura, com a cabeça no seu ombro, quase podia sentir os corações a bater em uníssono. Lá em cima, no alto da montanha, tive medo a sério, ao ser transportada de jeep por aqueles caminhos estreitíssimos, à beira dos precipícios, com pedras soltas na berma (do lado do precipício, bem se vê... ai! nem quero lembrar!). E quando se cruzavam dois jeeps? Estavam sempre a ver quem era mais malandro que o outro e se conseguia adiantar para fazer a passagem pelo lado de dentro (mesmo que isso implicasse fazê-lo em contramão). Aí, agarrava-me a ele com todas as forças, à procura de protecção, e escondia a cabeça contra o seu peito. Ele ria-se e chamava-me tonta. Segundo ele, não havia memória de alguma vez um jeep se haver despenhado. Os motoristas tinham muita prática e aquilo, para eles, era como viajar numa auto-estrada, para nós. Finalmente atingimos o planalto e foi como se tivéssemos chegado ao Paraíso. Lá no alto havia um único hotel, pequeno, mas lindo de morrer. Simpático e acolhedor, todo em madeira, com portadas e janelas verdes, telhados naturalmente bem inclinados, por causa da neve, e largas e compridas varandas a toda a volta, onde, numa confortável cadeira de repouso, se apanhavam excelentes banhos-de-sol. A vista era deslumbrante. Passámos lá o resto do dia e uma noite (de lua-de-mel, apetece-me dizer...). No dia seguinte, voltámos ao vale, novamente de teleférico, e a experiência repetiu-se. As sensações, os sentimentos. Esteve lá tudo outra vez.




Em casa dos pais dele fui tratada como "a" futura nora, para minha surpresa, e não como uma amiga do filho, como tinha suposto. Apesar disso, davam-nos a privacidade suficiente para que eu não me sentisse sufocada e, antes pelo contrário, fizeram-me sentir, de facto, em família, algo desconhecido para mim, naqueles moldes.

Quando acabaram as mini-férias e voltámos à vida normal fui surpreendida, poucos dias depois, por uma proposta dele no sentido de deixarmos as casas onde vivíamos, com colegas da Faculdade, e alugarmos um apartamento só para nós. Não esperava e fiquei sem resposta imediata. Disse-lhe que me parecia um bocado precipitado mas que iria pensar. Pensei, é claro.

Mas não precisei de pensar muito para saber que não queria, tão cedo na minha vida, encetar uma vida a dois, como se passasse a estar casada... não, decididamente, ainda não estava preparada para isso. Disse-lho no dia seguinte. Para quê adiar? Reagiu mal, a princípio, disse-me que, afinal, não o amava, senão teria ficado tão entusiasmada com a proposta como ele andou enquanto a congeminou e quando a concretizou. Até já tinha ido visitar alguns apartamentos na quase certeza da minha sintonia de objectivos. Após alguma dicussão, acabou por acalmar e resignar-se perante a fundamentação dos meus argumentos.

Nas férias de Verão eu voltava, invariavelmente, para junto da minha Avó, na Casa do Alto do Monte e, estranhamente, vivia esses dias tão intensamente, que não sentia a falta dele.

Continuámos, no entanto, a namorar e, próximo do final do Curso, apareceu-me com uma nova poposta. Desta vez, tipo ultimatum: tinha então o meu amado um tio que era cirurgião no principal Hospital de Gijón (era também Director ou, pelo menos, ocupava lá um cargo de poder). Dizia-me ele que já tinha falado com o tio e que, assim que terminássemos a Faculdade, iríamos os dois, direitinhos, trabalhar para o dito Hospital. Sem espinhas. Fiquei boquiaberta, como é de esperar. Apanhando-me naquele estado confucional, incapaz que estava de balbuciar fosse o que fosse, continou dizendo que, entretanto, não precisava de ser a correr, mas poderíamos ir começando a procurar residência e a pensar em casar. Aí, saltou-me a tampa!!!

Consegui articular: "casar?". "Sim", prosseguiu ele, "e depois teremos os nossos filhinhos. Já imaginaste a alegria dos meus pais quando formos passar férias a Potes, com a ranchada de netinhos à sua volta?". Passei-me. Interiormente furiosa com tamanho atentado à minha individualidade e liberdade de pensar e sentir, já para não falar em inteligência, limitei-me a retorquir, tentando aparentar uma calma e um domínio que estavam muito longe de corresponder à realidade: "então e se fosse ao contrário?". "Ao contrário, como?" perguntou ele, parecendo não conseguir vislumbrar nenhuma saída para nós além da que tinha planeado. "Então," disse eu, continuando a tentar manter a serenidade, "podíamos ir ambos para Portugal... certamente que trabalho não nos faltará, embora ainda não tenha feito qualquer contacto, ou tu já saberias disso..." o tom irónico desta última frase pareceu deixá-lo incomodado. Voltou à mesma conversa da outra vez: que eu não o amava, que todas as propostas vindas dele eram recusadas por mim, que o meu egoísmo era incomensurável ao ponto de só me deixar olhar para o meu umbigo, etc. etc...

Abreviando: ali mesmo acabou o "GRANDE AMOR". Separámo-nos zangados e estivemos vários dias sem nos procurarmos. Quando algum de nós avistava o outro, no campus, mudava de trajectória para evitar o encontro. Nas aulas em comum, comportávamo-nos como perfeitos estranhos.

Um dia, inevitavelmente, encontrámo-nos. Enfrentámos esse acaso e cumprimentámo-nos como dois amigos. De seguida, fomos até um bar, onde comemos uns pinchos e bebemos umas cervejas. Separámo-nos com as mais do que gastas frases-feitas "sem ressentimentos" e "amigos para sempre".

Terminámos o Curso, cada um foi à sua vida e nunca mais nos encontrámos nem procurámos comunicar. Há uns tempos soube, através de um amigo comum, que ele estava a exercer Medicina em Gijón, tinha casado com uma colega e já tinham um casalinho de filhos. Ainda bem para ele! Era o que queria, não era? Não foi comigo, mas outra soube corresponder ao modelo de amor, de mulher e de família que ele pretendia constituír. Quanto a mim, restam-me recordações muito bonitas, em especial da escapadela aos Picos de Europa e, sempre que sentir saudades de Cangas de Oníz, dos Montes Cantábricos ou do Naranjo de Bulnes, vou ao álbum de fotografias.

domingo, 10 de junho de 2007

Ganhar asas e voar

É tempo de partir. Devo-me isto.
Hoje, de forma inabalável, acordei com a decisão tomada. Sei que vou sentir-me morrer, todos os dias, com saudades da minha Serra, mas não posso adiar por mais tempo a saída do meu canto seguro. Tenho um mundo inteiro para conhecer, tenho obrigação de me ver e (re)conhecer nesse mundo. Chega de inventar desculpas para continuar agarrada a esta casa, a estes montes, às cores, aos cheiros, aos sons, aos sentimentos que me ligam às pessoas que conheço e amo. Aventurar-me no desconhecido tornou-se, finalmente, imperativo.
Os meus pais morreram de acidente quando eu era bem pequena. Desde então, vivi sempre com a avó, neste velho casarão do alto do monte, onde o vento nunca pára de soprar. Sempre que o tempo o permitia, passava os dias na rua, por vezes sozinha, mas quase sempre com dois amigos de casas relativamente próximas. Calcorreávamos montes e vales, pescávamos no rio ou, simplesmente, ficávamos deitados, debaixo de uma árvore, à beira da água, a conversar. Sobre a vida. A vida que conhecíamos, a de que tínhamos ouvido falar, a que queríamos viver quando crescêssemos. Contávamos estórias, que nos tinham contado ou que inventávamos para deixar os outros boquiabertos.
No Verão, quando o calor apertava, tirávamos as roupas e avançávamos, nuzinhos como viéramos ao mundo, para as águas frescas do rio, nadávamos até ao fim da tarde, engendrávamos mil e uma brincadeiras, mergulhávamos do alto de um penhasco (que não teria mais de três metros, mas que nos dava a sensação de estarmos a saltar de uma altura descomunal para a profundidade das águas - que, afinal, também não eram assim tão profundas!). Dias inteiros ao ar livre, comendo do lanchinho que a Madalena - a governanta da avó, sempre me obrigava a levar. E que bem nos sabia, quando a fome chegava. De resto, havia sempre, aqui ou ali, uns frutos silvestres para comer, que nos apaziguavam algum apetite por saciar e acentuavam o sabor das aventuras, reais ou imaginárias, que vivíamos em cada dia.
À noite, em casa, era delicioso falar com a avó, ouvi-la falar das suas recordações, ver fotografias, ouvir estórias contadas de cor, ou lidas de um livro, até ceder ao cansaço e acabar por adormecer. Também era muito engraçado assistir às discussões que a avó e a Madalena sempre alimentavam sendo, para tal, condição única, o facto de permanecerem durante mais de cinco segundos na mesma divisão da casa: durante a preparação do jantar, ao jantar propriamente dito, ao serão, noite fora... aquelas duas dariam a vida uma pela outra, se necessário, mas os desentendimentos, os amuos por tudo e por nada, faziam parte do jogo de coexistência que haviam desenvolvido ao longo de toda a vida e nem era bom pensar como continuariam por cá quando uma delas morresse, tal o sentimento de verdadeiro afecto que as unia...
A escola primária foi feita por aqui mesmo, na aldeia mais próxima, que ainda distava uns bons 10 Kms da Casa do Alto do Monte. Valia-me o Sr. Francisco, "pau para toda a obra" lá em casa, desde caseiro a jardineiro, passando por motorista, que me levava e ía buscar, pontualmente, no velho Austin preto da avó. Na escola havia meninos que vinham de tão longe, ou ainda mais, do que eu, muitos deles a pé. Poucos, muito poucos, tinham bicicleta. Alguns, no Inverno, eram obrigados a faltar às aulas porque o tempo frio, a chuva, a neve, não lhes permitia percorrer o caminho de distância. Aos que vinham a pé dos nossos lados, o Sr. Francisco dava sempre boleia, já estava pré-combinado, o pior eram os outros, que moravam em pontos distintos da Serra.
Para fazer o secundário já tinha que me deslocar à cidade. O Sr. Francisco, naturalmente uns anos mais cansado, continuava a transportar-me no velho Austin, mas havia dias em que temíamos que o motor do automóvel não aguentasse o esforço da subida de regresso à montanha. A verdade é que ambos, o meu querido Sr. Francisco e a peça de museu andante, lá se aguentaram até que eu terminasse o Liceu.
Foi-me difícil deixar a avó, a Madalena, o Sr. Francisco, os meus amigos de infância, quando pus em prática o plano de seguir o curso de Medicina, logo ali, do outro lado da fronteira, numa cidade grande, bonita, cheia de alegria e de pessoas simpáticas que falavam uma língua não muito diferente da nossa, com a qual rapidamente me senti à-vontade. Nas férias, sistematicamente, declinava convites dos colegas e amigos para ir passar férias ao Mediterrâneo, ao Algarve ou, até, noutras paragens mais longínquas, sempre junto ao mar. Seria, para mim, inconcebível, não aproveitar o pouco tempo livre junto da minha avó, de ano para ano mais fraca e doente.
Quando concluí os estudos não me foi, de todo, difícil arranjar colocação nos Postos de Saúde das redondezas e no Hospital da cidade onde tinha feito o secundário. Antes pelo contrário, "médico" é uma espécie rara e altamente valiosa aqui no interior. Por cá me tenho mantido. Gosto muito do que faço. Não é apenas vocação, é paixão. Agora desloco-me em transporte próprio, como é natural. De qualquer modo, o Sr. Francisco, para grande desgosto meu, faleceu enquanto eu ainda estava a estudar em Espanha e a viatura, que tão bons préstimos tivera, nunca mais saíu da garagem. A Madalena, sua companheira desde que os conhecera, não lhe sobreviveu muito tempo. Restou a minha avó, durante mais uns anos, embora cada vez mais tristonha e com falta de energia. Arranjámos uma empregada, uma rapariguinha nova, que passava os dias inteiros com ela, enquanto eu estava ausente a trabalhar, mas não lhe fazia companhia como a Madalena. Ai, a falta que a Madalena lhe fazia! Mais tarde, quando começou a precisar de cuidados de saúde mais rigorosos, contratei uma enfermeira a tempo inteiro, não deixando nunca de a dispensar quando podia ser eu própria a cuidar da minha avó. Querida avó!...
... partiu há três dias. Ainda está tudo muito recente, mas o fim não foi surpresa. Era esperado há algum tempo! Não vou, sequer, tecer considerações sobre o assunto. O meu coração está de luto, naturalmente, mas é a lei da vida... não há mesmo nada a fazer nem interessa dissertar sobre o assunto.
Voltemos, então, à minha viagem. Pois é, vou de férias. Vou por esse mundo fora. O primeiro sítio onde vou parar há-de ser um que tenha mar... muito mar... quero tanto sentir esse cheiro meu desconhecido que é o da maresia... e dormir ao som das ondas que se desfazem na areia, ou que embatem contra as rochas... . Também gostava de estar numa ilha. Ter a sensação de estar rodeada de água por todos os lados deve ser maravilhoso, inexcedível de prazer... bom, para mim, por enquanto é apenas indescritível, faz parte do meu imaginário desde criança. Esperemos por esse dia...
Vai ser um reboliço tremendo quando eu comunicar que vou de férias... nos Postos de Saúde, principalmente as idosas, dependentes habituais da minha presença, dirão quando souberem (parece que estou a vê-las!) : "O quê? A Dra. Mafalda vai de férias? E não se sabe quando regressa? Ai, valha-me Deus, mas isso é uma desgraça, o que vai ser da minha vida?!"
No Hospital também não vai ser fácil. Principalmente ao nível pessoal, com o meu namorado, que também exerce medicina a tempo inteiro, a maior parte do qual naquele lugar. Ao princípio, tentará dissuadir-me de partir. Sei que será capaz de imaginar as razões mais logicamente válidas para que eu mude de ideias. Depois, derrotado, irá propor-se acompanhar-me. Vai ser difícil, mas dir-lhe-ei, convictamente, que não. Ele vai ter que perceber que é a primeira vez que vou estar a sós comigo, sem depender de ninguém nem ter ninguém a depender de mim. Eu e o mundo. Lá fora, no desconhecido, para o que der e vier. Preciso desta experiência para crescer... como pessoa, como ser pensante, que sente, que carece de aventura, de saber, de conhecer, e tem apenas uma vida... como os outros.
Hei-de voltar. Acredito que sim. Dizem que, por muito tentador que seja o desconhecido, as raízes acabam por nos fazer querer regressar sempre às origens. À nossa terra. Ao nosso lar. Ao sítio onde, de facto, pertencemos, porque não é possível viver muito tempo sem o conforto do sentimento de pertença. Mas agora vou... vou gostar de olhar para trás e ver o meu monte bem longe. Sentir apenas uma suave brisa e saber que lá, no alto, continuará a soprar, sempre, o vento agreste. Agora, como quando eu voltar.

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Sabedoria

Desde tempos imemoriais que o mocho é associado à sabedoria. É vulgar aparecer, nos contos infantis, a figura de um velho mocho, de óculos com grossas lentes colocados sobre o bico. Contos do "maravilhoso" e do "fantástico", que almejam povoar o imaginário das crianças, recorrendo a conceitos mais ou menos improváveis, remetendo sempre os acontecimentos da estória para "o tempo em que os animais falavam...". Quantas e quantas vezes, meninos crédulos, com olhos a cintilar de alegria e curiosidade, fazem deste modo viagens alucinantes. E mais tarde, alguns deles, chegam a tornar-se escritores.
No Inverno passado conheci um. Era uma pessoa normal. Ninguém diria que, em criança, lhe tinham sido contadas tantas estórias inverosímeis, nem dava mostras de ter sofrido com isso algum trauma ou de ter tido que fazer tratamentos anti-depressivos, anti-psicóticos, anti-neuróticos ou outros que tais. Também nunca tinha frequentado o consultório de qualquer psicoterapeuta, que se soubesse. Enfim, comportava-se com naturalidade à mesa, comia com faca e garfo, não falava com a boca cheia, não arrotava (pelo menos de forma audível), bebia moderadamente e sorria com abundância. Quando lhe faziam perguntas sobre os seus livros ou elogiavam algumas das obras que havia publicado, limitava-se a responder, indo directamente ao assunto com frontalidade, sem rodeios, falsas modéstias ou rodriguinhos.
De repente, já para o final do jantar, num raro momento de silêncio em volta da mesa, disse:
"Ontem à noite, quando ía para casa, estava uma lua-cheia como não via desde criança. Ao passar junto a um pinheiro vi um mocho-bébé." O silêncio redobrou de intensidade, na expectativa do que se seguiria. "Ainda não usava óculos", continuou. "É evidente, com aquela idade ainda não leu o suficiente para precisar de recorrer a tão incómodos artefactos, mas tinha uns olhos do tamanho do mundo. Parei e meti conversa. Para tristeza minha, o jovem sábio não me respondeu. Ignorou-me completamente. Conseguiu irritar-me, sabem. Do alto da sua arrogância de jovem macho (mas já sabichão), nem um simples conselho se deu ao trabalho de me oferecer. E eu que toda a vida esperei por isso!".
Os convivas riram a bom rir, convencidos que estavam de que o escritor tinha resolvido brincar com tão simpática assembleia. E não é que o homem se levantou da mesa, atirou com o guardanapo acintosamente, balbuciou um "boa noite, meus senhores", pegou no chapéu e no pingalim e dirigiu-se à porta, sem se dignar conceder um último olhar, nem que fosse aos donos da casa. E, para que dúvidas não restassem àcerca do seu desagrado, foi com um semblante visivelmente carregado que tranpôs a saída da sala.
Mal virou costas, toda a gente desatou à gargalhada, como seria de esperar, e alguém mais atrevido proferiu em voz bem alta : "olhem, e não é que o nosso escritor amuou!"
O jantar continuou, com risos e mais risos, só tendo terminado após uma comovente homenagem, num sincero brinde ao ilustre escritor.

domingo, 27 de maio de 2007

Da vida das flores


Hoje apetece-me escrever sem parar. Sinto formigueiros nas pontas dos dedos que me impelem, com fúria, para as teclas. Tenho tanto para dizer e o tempo parece-me tão curto! A vida pode ser muito rápida, passar num instante e revelar-se insuficiente para tudo o que quero fazer. Sei que sou nova e tenho que aprender a ser mais paciente, mas mesmo os novos podem não ter muito tempo de vida à sua frente. Sei-o de fonte segura, da pior maneira, através da constatação da morte de amigos da minha idade, com tantos sonhos por concretizar, tantas viagens por fazer, tanta gente por conhecer, tantos projectos por realizar, tanta vida por viver!
Há pouco, dei por mim a olhar uma carroça que passou, por um carreiro da montanha, ajoujada de flores campestres, flores que despontam naturalmente, de forma cíclica, na primavera de cada ano, e pensei qual o destino de tanta flor bonita amputada, roubada à sua vida de flor, exclusivamente dependente da terra, do sol, da chuva, do vento. E se uma flor, enquanto ser vivo, também tivesse aspirações, desejos, sonhos, nem que fosse o de permanecer na encosta, até ao fim da primavera, e deixar-se sentir, fruir com prazer de flor, cada raio de sol, cada pingo de chuva, cada sopro de brisa? Isso faria de quem as apanhou um assassino cruel. Não, não posso pensar assim.
Se houvesse alguma possibilidade de existir sensibilidade no reino vegetal, as divindades
não permitiriam que se oferecessem flores nos aniversários, em gestos amorosos, ou como última homenagem a um ente querido que parte... (hum... à excepção das impiedosas Moiras, da mitologia grega, ou das Parcas, da romana, que também pertencem ao grupo. Estava a esquecer-me dessas, é verdade, que cabeça a minha!).
Bem, vou apressar-me a fazer qualquer coisa, das muitas que pretendo, antes que a Morte chegue e me arranque pela raíz, ou me ceife pelo caule, com a sua foice implacável!

quinta-feira, 24 de maio de 2007

Um Meme

Agradeço à Graça Pires, do Ortografia do Olhar a simpatia por me ter incluído nesta corrente.

O Meme (*) escolhido:

Excerto de "Fragmentos de um Discurso Amoroso"
de Roland Barthes

"A linguagem é uma pele: esfrego a minha linguagem contra a do outro. É como se tivesse palavras de dedos ou dedos na extremidade das minhas palavras. A minha linguagem treme de desejo. A emoção resulta de um duplo contacto: por um lado, toda uma actividade de discurso vem acentuar discretamente, indirectamente, um significado único, que é "eu desejo-te", e liberta-o, alimenta-o, ramifica-o, fá-lo explodir (a linguagem tem prazer em tocar-se a si própria); por outro lado, envolvo o outro nas minhas palavras, acaricio-o, toco-lhe, mantenho este contacto, esgoto-me ao fazer durar o comentário ao qual submeto a relação.

(Falar apaixonadamente é gastar sem termo, sem crise; é manter uma relação sem orgasmo. Existe talvez uma forma literária para este coitus reservatus: é a afectação.)"

Agora os seis nomeados (todos do género masculino, só agora reparo na coincidência) para darem continuidade (ou não) a esta corrente, facto que fica ao critério de cada um, naturalmente:

Antecipadamente grata, desculpem qualquer coisinha... ;)

(*) Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre:
Um meme, termo cunhado em 1976 por Richard Dawkins no seu bestseller controverso O Gene Egoísta, é para a memória o análogo do gene na genética, a sua unidade mínima. É considerado como uma unidade de informação que se multiplica de cérebro em cérebro, ou entre locais onde a informação é armazenada (como livros) e outros locais de armazenamento ou cérebros. No que respeita à sua funcionalidade, o meme é considerado uma unidade de evolução cultural que pode de alguma forma autopropagar-se. Os memes podem ser ideias ou partes de ideias, línguas, sons, desenhos, capacidades, valores estéticos e morais, ou qualquer outra coisa que possa ser aprendida facilmente e transmitida enquanto unidade autónoma. O estudo dos modelos evolutivos da transferência de informação é conhecido como memética.
Quando usado num contexto coloquial e não especializado, o termo meme pode significar apenas a transmissão de informação de uma mente para outra. Este uso aproxima o termo da analogia da "linguagem como vírus", afastando-o do propósito original de Dawkins, que procurava definir os memes como replicadores de comportamentos.

segunda-feira, 21 de maio de 2007

Papoilas Ondulantes


Maio. Mês das papoilas. Papoilas ondulantes ao vento. Este vento agreste que nem em plena Primavera nos abandona. Apetece rebolar nos campos repletos de papoilas. Não o faço porque os estragos seriam muitos. Após a minha passagem, ficaria um rasto de papoilas dobradas, amachucadas, mortas. Não quero isso. Contento-me em olhá-las. Assim, tenho a garantia de não as molestar e poder deixá-las continuar a oferecer-me o espectáculo da sua beleza durante o tempo possível.
Esta manhã fui passear por um vasto campo de papoilas. Era um imenso tapete, um manto sem princípio nem fim. Algures, no meio, surgiu uma clareira. Deitei-me nela. O meu corpo estendido, completamento descontraído, em contacto directo com a terra. Eu era uma ilha num mar de papoilas. Deixei que o cheiro da terra me penetrasse as narinas, me irrompesse através da pele e alcançasse o mais íntimo de mim. Imaginei que o chão era o meu amante e o vento que, rentinho, passava por mim com suavidade, me acariciava como ele o teria feito. Uma aventura telúrica. Como testemunhas do meu prazer apenas as lindas e doces papoilas.
Quando se vive num ermo, simultaneamente selvagem e puro, a aspereza da terra chega a parecer meiguice. A mente deixa-se invadir por sonhos, como por cavalos a galope, e o corpo, o corpo acaba por sentir o que o imaginário quer que seja sentido. Hoje fui uma mulher muito amada e amei profundamente. Depois do turbilhão de emoções, de ter sido assaltada por uma enxurrada de sentimentos voluptuosos, voltei para casa com a leveza de quem tinha sabido o que era o amor físico, mesmo que tudo se tenha passado só entre mim e a natureza.

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Disse-me um passarinho

Disse-me um passarinho que a vida não é só tristeza. Que há lugares de alegria, onde as pessoas cantam, dançam e riem, com gargalhadas autênticas, sonoras, soltas de dentro para fora. Que há cidades onde o quotidiano, de tão preenchido, pode parecer alucinante, a quem chega de um sítio calmo e sereno como este em que habito. Que, por vezes, as pessoas que vivem nas grandes cidades passam o dia a corrrer, de um lado para o outro, de casa para o trabalho, no trabalho a trabalhar, do trabalho para o restaurante, do restaurante para o cinema, do cinema para o bar, do bar para casa, onde dormem escassas horas para, no dia seguinte, recomeçarem no mesmo vai-vém de loucos. Que algumas pessoas, nas cidades, ganham muito dinheiro e logo de seguida o gastam, sem dar por isso, e ficam cheios de dívidas, mas continuam a viver como se fossem ricos, livres e despreocupados porque logo, logo, voltarão a ganhar muito dinheiro, que poderão gastar a seu bel-prazer até voltarem a ficar cheios de dívidas. Sempre com ar de ricos, felizes, como se a vida não fosse senão isso. O passarinho disse-me que isto não é tristeza. Eu achei triste. Gosto da parte da música, da dança, das risadas despreocupadas, noite fora, como se os tempos difíceis nunca estivessem para vir e a morte pudesse ser permanentemente adiada. Agora, aqui para nós, que temos cabecinha para pensar, não será tudo isso ilusório? Uma vida de faz-de-conta encenada até ao dia em que termina... e afinal o que fica, depois de tudo acabado? Um frenesim sem-sentido. Um nasce-vive-morre sem estória. Se isto não é triste, o que será?
Disse-me um passarinho que a vida não é só tristeza. Acredito, a sério que acredito. Não me parece, no entanto, que seja nessa balbúrdia das grandes cidades que mora a verdadeira alegria. Não, disso não me consegue ele convencer. Vou continuar a ouvi-lo a ver se percebo o que ele quis dizer para além do que disse. Talvez não me tenha dito tudo. Talvez a intenção seja essa e nunca me chegue a dizer tudo, para que eu tenha de demonstrar esforço e, pelos meus próprios meios, descubra o segredo da alegria. Da alegria fora daqui, bem se vê, porque esta conheço eu bem. Não me chega, eu sei. Não me contento com a alegria que conheço e que deverá ser ínfima quando comparada com a tal alegria que o passarinho diz existir. Duma coisa tenho a certeza: vou continuar a procurá-la, ai isso vou!

segunda-feira, 14 de maio de 2007

O mar


Gostava de um dia ver o mar. Tenho lido que não há grandeza que se lhe compare. Dizem mesmo que este planeta que nos acolhe é constituído por uma massa aquática muitas vezes superior à terrestre. Ouvi contar aos anciãos que, lá mais para sul, há muita água. Tanta que se perde de vista. Não um ribeiro, ou um rio, mas dessa água imensa a que chamam mar e que faz parte de um oceano. Depois, como a terra é redonda e os continentes são como grandes ilhas, há quem afirme que os oceanos estão todos ligados entre si e que, no fim das contas, acabam por ser um único. Conta-se que a vastidão desse mar é tanta que as embarcações que por lá navegam (com os mais variados nomes, formas e dimensões) têm que ser avisados, através de faróis que existem em terra, de que o líquido em que se deslocam termina abruptamente, aqui e ali, numa falésia rochosa ou numa praia de areia macia e dourada, para que não embatam furiosamente ou fiquem encalhados, sem saída. No outro dia, encontrei uma fotografia de uma casa num penhasco com uma torre, do alto da qual parece ser emitida uma luz. Imaginei logo que fosse um farol. O que me vale são estas imagens, as quais vou colando à minha imaginação e, pelo menos para mim, fazem sentido. Mas lá que gostava de um dia ver o mar, gostava.