terça-feira, 26 de junho de 2007

Saudades


Está tudo a correr sobre rodas. Neste momento, ultimo os preparativos para a minha viagem. A desejada libertação está apenas a alguns dias de distância. Já fiz o roteiro, de forma grosseira, porque não gosto de planear em demasia. Há lugares-chave que faço questão de conhecer. De resto, muito da viagem será deixado ao sabor do acaso, dos acontecimentos que me levarão aqui ou ali, para que a aura de aventura seja uma constante em cada dia que passa.
Comecei a contagem decrescente. Já sinto um frenesim dos pés à cabeça e um apertozinho no estômago indica que a ansiedade está a aumentar.
Resolvi tudo o que havia para resolver, estou livre e desimpedida. Tenho vindo a dar a notícia aos amigos, calmamente, para que não se criem grandes excitações à minha volta (basta a minha!). O Nanu, o meu gato de estimação, vai ficar em casa da minha amiga Teresa, que tem lá mais dois e é maluquinha por todo o tipo de bichos. Bem entregue, portanto. O pior vão ser as saudades... do Nanu, é claro (e não só... estou a brincar). Vou ter saudades de muita gente, de muitos lugares, dos cheiros, das cores, dos sons do campo, da casa no alto do monte, até do vento eu vou sentir saudades!
Isto é mesmo coisa de portuguesinha! Só mesmo uma pessoa desta terra para ir fazer a viagem da sua vida e, por antecipação, começar a sentir saudades do que vai deixar. Fazer o quê? Somos assim. Eu seguramente que sou, quanto a isso não tenho dúvidas.
A vontade de partir é mais forte, no entanto. Não vão ser pieguices destas que me farão desistir da viagem. E quero crer que quando me apanhar bem longe de tudo o que tem feito parte, até agora, da minha minúscula e desenxabida existência, até estas saudades me vão parecer um pouco ridículas.
(Pelo sim, pelo não, levo uma fotografia do Nanu comigo, como quem leva a imagem de um santo protector. Assim, se me achar perdida no mundo, olho a fotografia com carinho e saudade e dar-se-à o milagre: ela saberá trazer-me, que nem um mapa, ou um sofisticado GPS, de volta ao meu gato, à minha montanha, ao meu aconchego).

domingo, 17 de junho de 2007

O amor, o amor...

Mas, afinal, o que é isso do Amor? Um amigo perguntou-me, muito recentemente, se eu já tinha amado verdadeiramente e se sabia o que era o estado de paixão. Com a maior das sinceridades respondi-lhe que não sabia se o que tinha sentido pelos meus (poucos) namorados tinha, alguma vez, chegado a ser amor. A verdade é que fiquei a pensar no assunto de tal forma que viajei até aos tempos de jovem universitária, quando tive um namorado que, na altura, acreditei amar. Era um bonito rapaz, moreno, de cabelos e olhos negros e um largo sorriso franco. Tinha uma bela figura e adorava dançar. Foi com ele que aprendi a gostar da música tradicional das Astúrias, de raízes claramente celtas, e a executar, com gosto, os passos de dança ritmados, alegres, descontraídos. Éramos a companhia preferida um do outro. Passávamos juntos todo o tempo que podíamos: conversávamos, ríamos, brincávamos como duas crianças. Também passeávamos muitas vezes, de mãos dadas, ou abraçados, pelas ruas da cidade. De repente, parávamos, fosse onde fosse, e beijávamo-nos, como se o mundo fosse acabar no minuto seguinte, por isso chamávamos a essas demonstrações de afecto e desejo "beijos de fim do mundo".



Numas curtas férias roubadas ao estudo, fui com ele conhecer a sua terra, os sítios dos seus encantos (que passaram a ser também dos meus, confesso). Assentámos arraiais em casa dos pais dele, na linda vila medieval de Potes, bem no coração das Astúrias, de onde partíamos todos os dias de manhã para voltar à noite, visitando assim uma boa boa parte dos Picos de Europa. Lugares maravilhosos, tenho que reconhecer. Nessa altura, estou certa disso, sentia-me apaixonada: pela vida, pelo amor, pelo meu rapaz, com quem estava a descobrir as delícias do sexo, do prazer íntimo, em complemento do prazer do que vivíamos juntos, na partilha da contemplação das belezas naturais que visitávamos. Em termos gastronómicos, ele prometeu-me que iria deliciar-me com, pelo menos, três maravilhas locais: a "fabada" (espécie de feijoada à portuguesa, mas com feijões brancos, grandes), a "sidra" (bebida verdadeiramente mágica, desenvolvida pelos druidas dos antepassados celtas e que, ainda hoje, obedece a rigorosos preceitos de manipulação, que se assemelham a um ritual, antes de ser degustada) e o "queso de cabrales" (com um fedor de fugir, mas um sabor equivalente ao melhor manjar dos deuses). Em Fuente Dé andei de teleférico, pela primeira e única vez, e tive uma sensação de liberdade, de plenitude, de qualquer coisa que deverá andar muito próxima daquilo a que chamam felicidade. Enlaçada pela cintura, com a cabeça no seu ombro, quase podia sentir os corações a bater em uníssono. Lá em cima, no alto da montanha, tive medo a sério, ao ser transportada de jeep por aqueles caminhos estreitíssimos, à beira dos precipícios, com pedras soltas na berma (do lado do precipício, bem se vê... ai! nem quero lembrar!). E quando se cruzavam dois jeeps? Estavam sempre a ver quem era mais malandro que o outro e se conseguia adiantar para fazer a passagem pelo lado de dentro (mesmo que isso implicasse fazê-lo em contramão). Aí, agarrava-me a ele com todas as forças, à procura de protecção, e escondia a cabeça contra o seu peito. Ele ria-se e chamava-me tonta. Segundo ele, não havia memória de alguma vez um jeep se haver despenhado. Os motoristas tinham muita prática e aquilo, para eles, era como viajar numa auto-estrada, para nós. Finalmente atingimos o planalto e foi como se tivéssemos chegado ao Paraíso. Lá no alto havia um único hotel, pequeno, mas lindo de morrer. Simpático e acolhedor, todo em madeira, com portadas e janelas verdes, telhados naturalmente bem inclinados, por causa da neve, e largas e compridas varandas a toda a volta, onde, numa confortável cadeira de repouso, se apanhavam excelentes banhos-de-sol. A vista era deslumbrante. Passámos lá o resto do dia e uma noite (de lua-de-mel, apetece-me dizer...). No dia seguinte, voltámos ao vale, novamente de teleférico, e a experiência repetiu-se. As sensações, os sentimentos. Esteve lá tudo outra vez.




Em casa dos pais dele fui tratada como "a" futura nora, para minha surpresa, e não como uma amiga do filho, como tinha suposto. Apesar disso, davam-nos a privacidade suficiente para que eu não me sentisse sufocada e, antes pelo contrário, fizeram-me sentir, de facto, em família, algo desconhecido para mim, naqueles moldes.

Quando acabaram as mini-férias e voltámos à vida normal fui surpreendida, poucos dias depois, por uma proposta dele no sentido de deixarmos as casas onde vivíamos, com colegas da Faculdade, e alugarmos um apartamento só para nós. Não esperava e fiquei sem resposta imediata. Disse-lhe que me parecia um bocado precipitado mas que iria pensar. Pensei, é claro.

Mas não precisei de pensar muito para saber que não queria, tão cedo na minha vida, encetar uma vida a dois, como se passasse a estar casada... não, decididamente, ainda não estava preparada para isso. Disse-lho no dia seguinte. Para quê adiar? Reagiu mal, a princípio, disse-me que, afinal, não o amava, senão teria ficado tão entusiasmada com a proposta como ele andou enquanto a congeminou e quando a concretizou. Até já tinha ido visitar alguns apartamentos na quase certeza da minha sintonia de objectivos. Após alguma dicussão, acabou por acalmar e resignar-se perante a fundamentação dos meus argumentos.

Nas férias de Verão eu voltava, invariavelmente, para junto da minha Avó, na Casa do Alto do Monte e, estranhamente, vivia esses dias tão intensamente, que não sentia a falta dele.

Continuámos, no entanto, a namorar e, próximo do final do Curso, apareceu-me com uma nova poposta. Desta vez, tipo ultimatum: tinha então o meu amado um tio que era cirurgião no principal Hospital de Gijón (era também Director ou, pelo menos, ocupava lá um cargo de poder). Dizia-me ele que já tinha falado com o tio e que, assim que terminássemos a Faculdade, iríamos os dois, direitinhos, trabalhar para o dito Hospital. Sem espinhas. Fiquei boquiaberta, como é de esperar. Apanhando-me naquele estado confucional, incapaz que estava de balbuciar fosse o que fosse, continou dizendo que, entretanto, não precisava de ser a correr, mas poderíamos ir começando a procurar residência e a pensar em casar. Aí, saltou-me a tampa!!!

Consegui articular: "casar?". "Sim", prosseguiu ele, "e depois teremos os nossos filhinhos. Já imaginaste a alegria dos meus pais quando formos passar férias a Potes, com a ranchada de netinhos à sua volta?". Passei-me. Interiormente furiosa com tamanho atentado à minha individualidade e liberdade de pensar e sentir, já para não falar em inteligência, limitei-me a retorquir, tentando aparentar uma calma e um domínio que estavam muito longe de corresponder à realidade: "então e se fosse ao contrário?". "Ao contrário, como?" perguntou ele, parecendo não conseguir vislumbrar nenhuma saída para nós além da que tinha planeado. "Então," disse eu, continuando a tentar manter a serenidade, "podíamos ir ambos para Portugal... certamente que trabalho não nos faltará, embora ainda não tenha feito qualquer contacto, ou tu já saberias disso..." o tom irónico desta última frase pareceu deixá-lo incomodado. Voltou à mesma conversa da outra vez: que eu não o amava, que todas as propostas vindas dele eram recusadas por mim, que o meu egoísmo era incomensurável ao ponto de só me deixar olhar para o meu umbigo, etc. etc...

Abreviando: ali mesmo acabou o "GRANDE AMOR". Separámo-nos zangados e estivemos vários dias sem nos procurarmos. Quando algum de nós avistava o outro, no campus, mudava de trajectória para evitar o encontro. Nas aulas em comum, comportávamo-nos como perfeitos estranhos.

Um dia, inevitavelmente, encontrámo-nos. Enfrentámos esse acaso e cumprimentámo-nos como dois amigos. De seguida, fomos até um bar, onde comemos uns pinchos e bebemos umas cervejas. Separámo-nos com as mais do que gastas frases-feitas "sem ressentimentos" e "amigos para sempre".

Terminámos o Curso, cada um foi à sua vida e nunca mais nos encontrámos nem procurámos comunicar. Há uns tempos soube, através de um amigo comum, que ele estava a exercer Medicina em Gijón, tinha casado com uma colega e já tinham um casalinho de filhos. Ainda bem para ele! Era o que queria, não era? Não foi comigo, mas outra soube corresponder ao modelo de amor, de mulher e de família que ele pretendia constituír. Quanto a mim, restam-me recordações muito bonitas, em especial da escapadela aos Picos de Europa e, sempre que sentir saudades de Cangas de Oníz, dos Montes Cantábricos ou do Naranjo de Bulnes, vou ao álbum de fotografias.

domingo, 10 de junho de 2007

Ganhar asas e voar

É tempo de partir. Devo-me isto.
Hoje, de forma inabalável, acordei com a decisão tomada. Sei que vou sentir-me morrer, todos os dias, com saudades da minha Serra, mas não posso adiar por mais tempo a saída do meu canto seguro. Tenho um mundo inteiro para conhecer, tenho obrigação de me ver e (re)conhecer nesse mundo. Chega de inventar desculpas para continuar agarrada a esta casa, a estes montes, às cores, aos cheiros, aos sons, aos sentimentos que me ligam às pessoas que conheço e amo. Aventurar-me no desconhecido tornou-se, finalmente, imperativo.
Os meus pais morreram de acidente quando eu era bem pequena. Desde então, vivi sempre com a avó, neste velho casarão do alto do monte, onde o vento nunca pára de soprar. Sempre que o tempo o permitia, passava os dias na rua, por vezes sozinha, mas quase sempre com dois amigos de casas relativamente próximas. Calcorreávamos montes e vales, pescávamos no rio ou, simplesmente, ficávamos deitados, debaixo de uma árvore, à beira da água, a conversar. Sobre a vida. A vida que conhecíamos, a de que tínhamos ouvido falar, a que queríamos viver quando crescêssemos. Contávamos estórias, que nos tinham contado ou que inventávamos para deixar os outros boquiabertos.
No Verão, quando o calor apertava, tirávamos as roupas e avançávamos, nuzinhos como viéramos ao mundo, para as águas frescas do rio, nadávamos até ao fim da tarde, engendrávamos mil e uma brincadeiras, mergulhávamos do alto de um penhasco (que não teria mais de três metros, mas que nos dava a sensação de estarmos a saltar de uma altura descomunal para a profundidade das águas - que, afinal, também não eram assim tão profundas!). Dias inteiros ao ar livre, comendo do lanchinho que a Madalena - a governanta da avó, sempre me obrigava a levar. E que bem nos sabia, quando a fome chegava. De resto, havia sempre, aqui ou ali, uns frutos silvestres para comer, que nos apaziguavam algum apetite por saciar e acentuavam o sabor das aventuras, reais ou imaginárias, que vivíamos em cada dia.
À noite, em casa, era delicioso falar com a avó, ouvi-la falar das suas recordações, ver fotografias, ouvir estórias contadas de cor, ou lidas de um livro, até ceder ao cansaço e acabar por adormecer. Também era muito engraçado assistir às discussões que a avó e a Madalena sempre alimentavam sendo, para tal, condição única, o facto de permanecerem durante mais de cinco segundos na mesma divisão da casa: durante a preparação do jantar, ao jantar propriamente dito, ao serão, noite fora... aquelas duas dariam a vida uma pela outra, se necessário, mas os desentendimentos, os amuos por tudo e por nada, faziam parte do jogo de coexistência que haviam desenvolvido ao longo de toda a vida e nem era bom pensar como continuariam por cá quando uma delas morresse, tal o sentimento de verdadeiro afecto que as unia...
A escola primária foi feita por aqui mesmo, na aldeia mais próxima, que ainda distava uns bons 10 Kms da Casa do Alto do Monte. Valia-me o Sr. Francisco, "pau para toda a obra" lá em casa, desde caseiro a jardineiro, passando por motorista, que me levava e ía buscar, pontualmente, no velho Austin preto da avó. Na escola havia meninos que vinham de tão longe, ou ainda mais, do que eu, muitos deles a pé. Poucos, muito poucos, tinham bicicleta. Alguns, no Inverno, eram obrigados a faltar às aulas porque o tempo frio, a chuva, a neve, não lhes permitia percorrer o caminho de distância. Aos que vinham a pé dos nossos lados, o Sr. Francisco dava sempre boleia, já estava pré-combinado, o pior eram os outros, que moravam em pontos distintos da Serra.
Para fazer o secundário já tinha que me deslocar à cidade. O Sr. Francisco, naturalmente uns anos mais cansado, continuava a transportar-me no velho Austin, mas havia dias em que temíamos que o motor do automóvel não aguentasse o esforço da subida de regresso à montanha. A verdade é que ambos, o meu querido Sr. Francisco e a peça de museu andante, lá se aguentaram até que eu terminasse o Liceu.
Foi-me difícil deixar a avó, a Madalena, o Sr. Francisco, os meus amigos de infância, quando pus em prática o plano de seguir o curso de Medicina, logo ali, do outro lado da fronteira, numa cidade grande, bonita, cheia de alegria e de pessoas simpáticas que falavam uma língua não muito diferente da nossa, com a qual rapidamente me senti à-vontade. Nas férias, sistematicamente, declinava convites dos colegas e amigos para ir passar férias ao Mediterrâneo, ao Algarve ou, até, noutras paragens mais longínquas, sempre junto ao mar. Seria, para mim, inconcebível, não aproveitar o pouco tempo livre junto da minha avó, de ano para ano mais fraca e doente.
Quando concluí os estudos não me foi, de todo, difícil arranjar colocação nos Postos de Saúde das redondezas e no Hospital da cidade onde tinha feito o secundário. Antes pelo contrário, "médico" é uma espécie rara e altamente valiosa aqui no interior. Por cá me tenho mantido. Gosto muito do que faço. Não é apenas vocação, é paixão. Agora desloco-me em transporte próprio, como é natural. De qualquer modo, o Sr. Francisco, para grande desgosto meu, faleceu enquanto eu ainda estava a estudar em Espanha e a viatura, que tão bons préstimos tivera, nunca mais saíu da garagem. A Madalena, sua companheira desde que os conhecera, não lhe sobreviveu muito tempo. Restou a minha avó, durante mais uns anos, embora cada vez mais tristonha e com falta de energia. Arranjámos uma empregada, uma rapariguinha nova, que passava os dias inteiros com ela, enquanto eu estava ausente a trabalhar, mas não lhe fazia companhia como a Madalena. Ai, a falta que a Madalena lhe fazia! Mais tarde, quando começou a precisar de cuidados de saúde mais rigorosos, contratei uma enfermeira a tempo inteiro, não deixando nunca de a dispensar quando podia ser eu própria a cuidar da minha avó. Querida avó!...
... partiu há três dias. Ainda está tudo muito recente, mas o fim não foi surpresa. Era esperado há algum tempo! Não vou, sequer, tecer considerações sobre o assunto. O meu coração está de luto, naturalmente, mas é a lei da vida... não há mesmo nada a fazer nem interessa dissertar sobre o assunto.
Voltemos, então, à minha viagem. Pois é, vou de férias. Vou por esse mundo fora. O primeiro sítio onde vou parar há-de ser um que tenha mar... muito mar... quero tanto sentir esse cheiro meu desconhecido que é o da maresia... e dormir ao som das ondas que se desfazem na areia, ou que embatem contra as rochas... . Também gostava de estar numa ilha. Ter a sensação de estar rodeada de água por todos os lados deve ser maravilhoso, inexcedível de prazer... bom, para mim, por enquanto é apenas indescritível, faz parte do meu imaginário desde criança. Esperemos por esse dia...
Vai ser um reboliço tremendo quando eu comunicar que vou de férias... nos Postos de Saúde, principalmente as idosas, dependentes habituais da minha presença, dirão quando souberem (parece que estou a vê-las!) : "O quê? A Dra. Mafalda vai de férias? E não se sabe quando regressa? Ai, valha-me Deus, mas isso é uma desgraça, o que vai ser da minha vida?!"
No Hospital também não vai ser fácil. Principalmente ao nível pessoal, com o meu namorado, que também exerce medicina a tempo inteiro, a maior parte do qual naquele lugar. Ao princípio, tentará dissuadir-me de partir. Sei que será capaz de imaginar as razões mais logicamente válidas para que eu mude de ideias. Depois, derrotado, irá propor-se acompanhar-me. Vai ser difícil, mas dir-lhe-ei, convictamente, que não. Ele vai ter que perceber que é a primeira vez que vou estar a sós comigo, sem depender de ninguém nem ter ninguém a depender de mim. Eu e o mundo. Lá fora, no desconhecido, para o que der e vier. Preciso desta experiência para crescer... como pessoa, como ser pensante, que sente, que carece de aventura, de saber, de conhecer, e tem apenas uma vida... como os outros.
Hei-de voltar. Acredito que sim. Dizem que, por muito tentador que seja o desconhecido, as raízes acabam por nos fazer querer regressar sempre às origens. À nossa terra. Ao nosso lar. Ao sítio onde, de facto, pertencemos, porque não é possível viver muito tempo sem o conforto do sentimento de pertença. Mas agora vou... vou gostar de olhar para trás e ver o meu monte bem longe. Sentir apenas uma suave brisa e saber que lá, no alto, continuará a soprar, sempre, o vento agreste. Agora, como quando eu voltar.

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Sabedoria

Desde tempos imemoriais que o mocho é associado à sabedoria. É vulgar aparecer, nos contos infantis, a figura de um velho mocho, de óculos com grossas lentes colocados sobre o bico. Contos do "maravilhoso" e do "fantástico", que almejam povoar o imaginário das crianças, recorrendo a conceitos mais ou menos improváveis, remetendo sempre os acontecimentos da estória para "o tempo em que os animais falavam...". Quantas e quantas vezes, meninos crédulos, com olhos a cintilar de alegria e curiosidade, fazem deste modo viagens alucinantes. E mais tarde, alguns deles, chegam a tornar-se escritores.
No Inverno passado conheci um. Era uma pessoa normal. Ninguém diria que, em criança, lhe tinham sido contadas tantas estórias inverosímeis, nem dava mostras de ter sofrido com isso algum trauma ou de ter tido que fazer tratamentos anti-depressivos, anti-psicóticos, anti-neuróticos ou outros que tais. Também nunca tinha frequentado o consultório de qualquer psicoterapeuta, que se soubesse. Enfim, comportava-se com naturalidade à mesa, comia com faca e garfo, não falava com a boca cheia, não arrotava (pelo menos de forma audível), bebia moderadamente e sorria com abundância. Quando lhe faziam perguntas sobre os seus livros ou elogiavam algumas das obras que havia publicado, limitava-se a responder, indo directamente ao assunto com frontalidade, sem rodeios, falsas modéstias ou rodriguinhos.
De repente, já para o final do jantar, num raro momento de silêncio em volta da mesa, disse:
"Ontem à noite, quando ía para casa, estava uma lua-cheia como não via desde criança. Ao passar junto a um pinheiro vi um mocho-bébé." O silêncio redobrou de intensidade, na expectativa do que se seguiria. "Ainda não usava óculos", continuou. "É evidente, com aquela idade ainda não leu o suficiente para precisar de recorrer a tão incómodos artefactos, mas tinha uns olhos do tamanho do mundo. Parei e meti conversa. Para tristeza minha, o jovem sábio não me respondeu. Ignorou-me completamente. Conseguiu irritar-me, sabem. Do alto da sua arrogância de jovem macho (mas já sabichão), nem um simples conselho se deu ao trabalho de me oferecer. E eu que toda a vida esperei por isso!".
Os convivas riram a bom rir, convencidos que estavam de que o escritor tinha resolvido brincar com tão simpática assembleia. E não é que o homem se levantou da mesa, atirou com o guardanapo acintosamente, balbuciou um "boa noite, meus senhores", pegou no chapéu e no pingalim e dirigiu-se à porta, sem se dignar conceder um último olhar, nem que fosse aos donos da casa. E, para que dúvidas não restassem àcerca do seu desagrado, foi com um semblante visivelmente carregado que tranpôs a saída da sala.
Mal virou costas, toda a gente desatou à gargalhada, como seria de esperar, e alguém mais atrevido proferiu em voz bem alta : "olhem, e não é que o nosso escritor amuou!"
O jantar continuou, com risos e mais risos, só tendo terminado após uma comovente homenagem, num sincero brinde ao ilustre escritor.