É tempo de partir. Devo-me isto.
Hoje, de forma inabalável, acordei com a decisão tomada. Sei que vou sentir-me morrer, todos os dias, com saudades da minha Serra, mas não posso adiar por mais tempo a saída do meu canto seguro. Tenho um mundo inteiro para conhecer, tenho obrigação de me ver e (re)conhecer nesse mundo. Chega de inventar desculpas para continuar agarrada a esta casa, a estes montes, às cores, aos cheiros, aos sons, aos sentimentos que me ligam às pessoas que conheço e amo. Aventurar-me no desconhecido tornou-se, finalmente, imperativo.
Os meus pais morreram de acidente quando eu era bem pequena. Desde então, vivi sempre com a avó, neste velho casarão do alto do monte, onde o vento nunca pára de soprar. Sempre que o tempo o permitia, passava os dias na rua, por vezes sozinha, mas quase sempre com dois amigos de casas relativamente próximas. Calcorreávamos montes e vales, pescávamos no rio ou, simplesmente, ficávamos deitados, debaixo de uma árvore, à beira da água, a conversar. Sobre a vida. A vida que conhecíamos, a de que tínhamos ouvido falar, a que queríamos viver quando crescêssemos. Contávamos estórias, que nos tinham contado ou que inventávamos para deixar os outros boquiabertos.
No Verão, quando o calor apertava, tirávamos as roupas e avançávamos, nuzinhos como viéramos ao mundo, para as águas frescas do rio, nadávamos até ao fim da tarde, engendrávamos mil e uma brincadeiras, mergulhávamos do alto de um penhasco (que não teria mais de três metros, mas que nos dava a sensação de estarmos a saltar de uma altura descomunal para a profundidade das águas - que, afinal, também não eram assim tão profundas!). Dias inteiros ao ar livre, comendo do lanchinho que a Madalena - a governanta da avó, sempre me obrigava a levar. E que bem nos sabia, quando a fome chegava. De resto, havia sempre, aqui ou ali, uns frutos silvestres para comer, que nos apaziguavam algum apetite por saciar e acentuavam o sabor das aventuras, reais ou imaginárias, que vivíamos em cada dia.
À noite, em casa, era delicioso falar com a avó, ouvi-la falar das suas recordações, ver fotografias, ouvir estórias contadas de cor, ou lidas de um livro, até ceder ao cansaço e acabar por adormecer. Também era muito engraçado assistir às discussões que a avó e a Madalena sempre alimentavam sendo, para tal, condição única, o facto de permanecerem durante mais de cinco segundos na mesma divisão da casa: durante a preparação do jantar, ao jantar propriamente dito, ao serão, noite fora... aquelas duas dariam a vida uma pela outra, se necessário, mas os desentendimentos, os amuos por tudo e por nada, faziam parte do jogo de coexistência que haviam desenvolvido ao longo de toda a vida e nem era bom pensar como continuariam por cá quando uma delas morresse, tal o sentimento de verdadeiro afecto que as unia...
A escola primária foi feita por aqui mesmo, na aldeia mais próxima, que ainda distava uns bons 10 Kms da Casa do Alto do Monte. Valia-me o Sr. Francisco, "pau para toda a obra" lá em casa, desde caseiro a jardineiro, passando por motorista, que me levava e ía buscar, pontualmente, no velho Austin preto da avó. Na escola havia meninos que vinham de tão longe, ou ainda mais, do que eu, muitos deles a pé. Poucos, muito poucos, tinham bicicleta. Alguns, no Inverno, eram obrigados a faltar às aulas porque o tempo frio, a chuva, a neve, não lhes permitia percorrer o caminho de distância. Aos que vinham a pé dos nossos lados, o Sr. Francisco dava sempre boleia, já estava pré-combinado, o pior eram os outros, que moravam em pontos distintos da Serra.
Para fazer o secundário já tinha que me deslocar à cidade. O Sr. Francisco, naturalmente uns anos mais cansado, continuava a transportar-me no velho Austin, mas havia dias em que temíamos que o motor do automóvel não aguentasse o esforço da subida de regresso à montanha. A verdade é que ambos, o meu querido Sr. Francisco e a peça de museu andante, lá se aguentaram até que eu terminasse o Liceu.
Foi-me difícil deixar a avó, a Madalena, o Sr. Francisco, os meus amigos de infância, quando pus em prática o plano de seguir o curso de Medicina, logo ali, do outro lado da fronteira, numa cidade grande, bonita, cheia de alegria e de pessoas simpáticas que falavam uma língua não muito diferente da nossa, com a qual rapidamente me senti à-vontade. Nas férias, sistematicamente, declinava convites dos colegas e amigos para ir passar férias ao Mediterrâneo, ao Algarve ou, até, noutras paragens mais longínquas, sempre junto ao mar. Seria, para mim, inconcebível, não aproveitar o pouco tempo livre junto da minha avó, de ano para ano mais fraca e doente.
Quando concluí os estudos não me foi, de todo, difícil arranjar colocação nos Postos de Saúde das redondezas e no Hospital da cidade onde tinha feito o secundário. Antes pelo contrário, "médico" é uma espécie rara e altamente valiosa aqui no interior. Por cá me tenho mantido. Gosto muito do que faço. Não é apenas vocação, é paixão. Agora desloco-me em transporte próprio, como é natural. De qualquer modo, o Sr. Francisco, para grande desgosto meu, faleceu enquanto eu ainda estava a estudar em Espanha e a viatura, que tão bons préstimos tivera, nunca mais saíu da garagem. A Madalena, sua companheira desde que os conhecera, não lhe sobreviveu muito tempo. Restou a minha avó, durante mais uns anos, embora cada vez mais tristonha e com falta de energia. Arranjámos uma empregada, uma rapariguinha nova, que passava os dias inteiros com ela, enquanto eu estava ausente a trabalhar, mas não lhe fazia companhia como a Madalena. Ai, a falta que a Madalena lhe fazia! Mais tarde, quando começou a precisar de cuidados de saúde mais rigorosos, contratei uma enfermeira a tempo inteiro, não deixando nunca de a dispensar quando podia ser eu própria a cuidar da minha avó. Querida avó!...
... partiu há três dias. Ainda está tudo muito recente, mas o fim não foi surpresa. Era esperado há algum tempo! Não vou, sequer, tecer considerações sobre o assunto. O meu coração está de luto, naturalmente, mas é a lei da vida... não há mesmo nada a fazer nem interessa dissertar sobre o assunto.
Voltemos, então, à minha viagem. Pois é, vou de férias. Vou por esse mundo fora. O primeiro sítio onde vou parar há-de ser um que tenha mar... muito mar... quero tanto sentir esse cheiro meu desconhecido que é o da maresia... e dormir ao som das ondas que se desfazem na areia, ou que embatem contra as rochas... . Também gostava de estar numa ilha. Ter a sensação de estar rodeada de água por todos os lados deve ser maravilhoso, inexcedível de prazer... bom, para mim, por enquanto é apenas indescritível, faz parte do meu imaginário desde criança. Esperemos por esse dia...
Vai ser um reboliço tremendo quando eu comunicar que vou de férias... nos Postos de Saúde, principalmente as idosas, dependentes habituais da minha presença, dirão quando souberem (parece que estou a vê-las!) : "O quê? A Dra. Mafalda vai de férias? E não se sabe quando regressa? Ai, valha-me Deus, mas isso é uma desgraça, o que vai ser da minha vida?!"
No Hospital também não vai ser fácil. Principalmente ao nível pessoal, com o meu namorado, que também exerce medicina a tempo inteiro, a maior parte do qual naquele lugar. Ao princípio, tentará dissuadir-me de partir. Sei que será capaz de imaginar as razões mais logicamente válidas para que eu mude de ideias. Depois, derrotado, irá propor-se acompanhar-me. Vai ser difícil, mas dir-lhe-ei, convictamente, que não. Ele vai ter que perceber que é a primeira vez que vou estar a sós comigo, sem depender de ninguém nem ter ninguém a depender de mim. Eu e o mundo. Lá fora, no desconhecido, para o que der e vier. Preciso desta experiência para crescer... como pessoa, como ser pensante, que sente, que carece de aventura, de saber, de conhecer, e tem apenas uma vida... como os outros.
Hei-de voltar. Acredito que sim. Dizem que, por muito tentador que seja o desconhecido, as raízes acabam por nos fazer querer regressar sempre às origens. À nossa terra. Ao nosso lar. Ao sítio onde, de facto, pertencemos, porque não é possível viver muito tempo sem o conforto do sentimento de pertença. Mas agora vou... vou gostar de olhar para trás e ver o meu monte bem longe. Sentir apenas uma suave brisa e saber que lá, no alto, continuará a soprar, sempre, o vento agreste. Agora, como quando eu voltar.