segunda-feira, 4 de junho de 2007

Sabedoria

Desde tempos imemoriais que o mocho é associado à sabedoria. É vulgar aparecer, nos contos infantis, a figura de um velho mocho, de óculos com grossas lentes colocados sobre o bico. Contos do "maravilhoso" e do "fantástico", que almejam povoar o imaginário das crianças, recorrendo a conceitos mais ou menos improváveis, remetendo sempre os acontecimentos da estória para "o tempo em que os animais falavam...". Quantas e quantas vezes, meninos crédulos, com olhos a cintilar de alegria e curiosidade, fazem deste modo viagens alucinantes. E mais tarde, alguns deles, chegam a tornar-se escritores.
No Inverno passado conheci um. Era uma pessoa normal. Ninguém diria que, em criança, lhe tinham sido contadas tantas estórias inverosímeis, nem dava mostras de ter sofrido com isso algum trauma ou de ter tido que fazer tratamentos anti-depressivos, anti-psicóticos, anti-neuróticos ou outros que tais. Também nunca tinha frequentado o consultório de qualquer psicoterapeuta, que se soubesse. Enfim, comportava-se com naturalidade à mesa, comia com faca e garfo, não falava com a boca cheia, não arrotava (pelo menos de forma audível), bebia moderadamente e sorria com abundância. Quando lhe faziam perguntas sobre os seus livros ou elogiavam algumas das obras que havia publicado, limitava-se a responder, indo directamente ao assunto com frontalidade, sem rodeios, falsas modéstias ou rodriguinhos.
De repente, já para o final do jantar, num raro momento de silêncio em volta da mesa, disse:
"Ontem à noite, quando ía para casa, estava uma lua-cheia como não via desde criança. Ao passar junto a um pinheiro vi um mocho-bébé." O silêncio redobrou de intensidade, na expectativa do que se seguiria. "Ainda não usava óculos", continuou. "É evidente, com aquela idade ainda não leu o suficiente para precisar de recorrer a tão incómodos artefactos, mas tinha uns olhos do tamanho do mundo. Parei e meti conversa. Para tristeza minha, o jovem sábio não me respondeu. Ignorou-me completamente. Conseguiu irritar-me, sabem. Do alto da sua arrogância de jovem macho (mas já sabichão), nem um simples conselho se deu ao trabalho de me oferecer. E eu que toda a vida esperei por isso!".
Os convivas riram a bom rir, convencidos que estavam de que o escritor tinha resolvido brincar com tão simpática assembleia. E não é que o homem se levantou da mesa, atirou com o guardanapo acintosamente, balbuciou um "boa noite, meus senhores", pegou no chapéu e no pingalim e dirigiu-se à porta, sem se dignar conceder um último olhar, nem que fosse aos donos da casa. E, para que dúvidas não restassem àcerca do seu desagrado, foi com um semblante visivelmente carregado que tranpôs a saída da sala.
Mal virou costas, toda a gente desatou à gargalhada, como seria de esperar, e alguém mais atrevido proferiu em voz bem alta : "olhem, e não é que o nosso escritor amuou!"
O jantar continuou, com risos e mais risos, só tendo terminado após uma comovente homenagem, num sincero brinde ao ilustre escritor.

15 comentários:

Rodrigo Fernandes (ex Rodrigo Rodrigues) disse...

Realmente o pássaro de Minerva só se faz ao voo no crepúsculo.

mafalda disse...

Caro perdido,
Constato, com alguma decepção, ser este o único comentário que o texto te mereceu... ou me engano muito ou já tive um lugar bem mais interessante na tua escala de apreciação!
Beijinho.

Rosa dos Ventos disse...

Não seria esse o objectivo pretendido?
Pôr a ilustre assembleia a rir com ele e não dele, embora na sua ausência?

Maria disse...

Ele há escritores assim....
Também deves conhecer alguns...
Gostei da foto do mocho (faço colecção destes bichos.....................)

Beijo, Mafalda

Rodrigo Fernandes (ex Rodrigo Rodrigues) disse...

Querida Mafalda.
O meu apreço por ti não anda à deriva dos ventos e marés. Além disso, penso que o mérito de um texto não se afere pela quantidade dos comentários que suscita. Se é pela qualidade dos comentário, pois vou ali e já venho. É que não tenho a prosápia de achar que os meus, particularmente, são sempre bons. Tenho é preguiça de escrever muito, sobretudo a certas horas, e se o fizer, arreceio-me de me tornar prolixo e maçador para quem ler. Hesitando, decido-me sempre por escrever qualquer coisa, que é como quem diz: "olha Mafalda, passei por aqui à tua porta, mas como ia com pressa, não quis entrar. Deixo-te apenas uma curta mensagem para dizer que me lembrei de ti". É assim que as coisas são.

Mas se leres com atenção o meu comentário verás que ele sublinha uma da partes mais interessantes do teu texto e dá uma pista sobre as verdadeiras intenções do sábio ao sair imtempestivamente batendo com as portas.

Parte do tempo que não tive para ti gastei-o a cozinhar uma resposta à tua pergunta sobre os "brights". A propósito, já leste? Se quiseres desenvolver alguma questão um pouco mais extensa e que não caiba no âmbito dos nossos blogs (suposto que não interessem à assistência) manda-me o que quiseres para o hotmail, para o endereço que está no meu perfil.

Beijinho.

Teresa Durães disse...

"eles não sabem que o sonho comanda a vida"

por isso uns são escritores e outros leitores :)

bom dia

A.S. disse...

Provávelmente foi tentar encontrar a insolente ave, para tentar perceber a sua mudez! Mas os mochos, como todos os sábios, são sempre imprevisiveis...

Gostei muito!


Bjs

Maria Carvalhosa disse...

Bem interessante esta história, Mafalda. Estás a mostrar-te à altura do que o teu primeiro texto prometeu.

Um beijinho.

Graça Pires disse...

Nem todos os que escrevem conseguem contar bem uma história, mas tu consegues Mafalda. Este teu pequeno conto é delicioso. Um beijo.

Espaços abertos.. disse...

Através de simples palavras consegues dar vida a um texto,os meus parabéns.
Bjs Zita

vida de vidro disse...

Ele atingia uma dimensão do sonho que nos é difícil entender. **

Anónimo disse...

lindo texto, adorei o remate final....

Jonice disse...

Poucos conseguem acreditar tão profundamente na imaginação. Seus livros devem ser deliciosos...
:)

Isabel José António disse...

Querida Amiga Vento Agreste,

Muito obrigado pela sua visita a um dos nossos espaços.

Este texto é muito mais profundo do que uma mera fábula. A irritação é uma espécie de lamento sobre a insensibilidade das pessoas que nos rodeiam.

Eles não sabem que a nossa mente é "cega". Ela não sabe distinguir o que a "realidade" e o que é a "imaginação". E dá ordens a todo o nosso ser para que se prepare para reagir e actuar em conformidade com o que está a vivenciar e/ou a imaginar, ou ainda, a intuir.

Ele estava a contar uma história e a vivenciá-la e ficou triste porque todos acharam piada e não compreenderam o sentido profundo (diria, oculto) que o que estava a contar possuía.

É o que acontece a quem consegue ver e compreender coisas que a maioria não vê ou não consegue compreender.

No entanto ele próprio também não era assim tão evoluído como poderia parecer. O que devemos fazer é dizer, ou fazer ou partilhar o que nos vai na alma, no coração ou no pensamento. Quem tiver capacidade para entender, certamente estará a vibrar na mesma frequência vibracional de quem diz, faz ou pensa. Quem não tiver, também tem direito a esperar.

Estamos todos a subir a mesma montanha. Uns sobem mais depressa e outros não. Todos lá chegaremos, mas cada um a seu ritmo.

Quem ele se foi embora poderia ter compreendido também que o estado evolutivo dos outros não lhe permitiriam compreender o que quereria dizer. Chama-se a isso falta de discernimento.

Sobe a montanha que agora vês
Ajuda quem vier também a subir
Já compreendes e agora já lês
Que a vida é sempre a fluir

Ouve todos com atenção e alerta
Abre em teu coração uma janela
Tem cuidado! Deixa-a entreaberta
Acarinha quem vier espreitar nela

Mas segue sempre teu caminho
Ousa ver mais alto e mais além
Dá a todos o teu imenso carinho
Será bem vindo quem vier também

Procura sempre o infinito AGORA
A eternidade é já ali que espreita
Não temas mesmo que vás embora
A alma não dorme! Nunca se deita


Parabéns pelo texto tão bonito e pela parábola nele contida.

Um grande abraço

José António

Nilson Barcelli disse...

Esta tua história é deliciosa.
Pela inteligência do texto, pela sua qualidade e pela abordagem do tema, em diversas passagens também nas entrelinhas.
Resumindo, gostei.
Beijinhos.