domingo, 11 de maio de 2008

A visita do bom gigante

"O gigante" - pintura de Goya - 1818

Sentada no velho e aconchegante cadeirão de verga, com o Nanu a fazer ron-ron sobre os meus joelhos, absorta na leitura à suave luz do candeeiro de pé, pareceu-me ouvir bater no vidro da varanda, mas ignorei. Empolgada que estava com aquela parte da estória, poderiam caír raios e coriscos, lá fora, que isso não me faria levantar os olhos do livro.

Voltei a ouvir. Desta vez, pareceu-me, com mais força e maior urgência, enquanto uma voz masculina gritava, repetidamente, uma frase, da qual só conseguia distinguir a palavra "perdido". "Que maçada, alguém que se perdeu com este temporal, descobriu a casa e agora vem aí pedir ajuda", pensei sem, contudo, enfrentar a vidraça da varanda antes de ter acabado de ler aquele parágrafo.

Finalmente a insistência do estranho venceu a minha insensibilidade perante a potencial aflição de um ser humano, levando-me a olhar em frente.

Reparei que a tarde, com a abundante chuva que caía, se tinha posto muito escura, apenas iluminada, de quando em vez, pelo lampejo de um relâmpago.

Como que por um acaso providencial, exactamente naquele momento, um relâmpago iluminou a figura que, do lado de fora, evidenciava claramente querer falar comigo.

Vi o homem. Completamente ensopado e desgrenhado pelo vento, gesticulava para que o deixasse entrar e repetia a palavra "perdido", enquanto o ribombar do trovão se sobrepunha ao som da sua voz. O Nanu, acabado de acordar e receoso do rumo dos acontecimentos, fugiu, literalmente com "o rabo entre as pernas", para dentro de casa, deixando-me sozinha perante o desconhecido.

Assustada, embora tentando não o transparecer, levantei-me para lhe abrir a porta. Assim que o fiz, um gigantesco homem entrou de rompante, dizendo "Desculpe, Sra. Dra., mas com toda esta borrasca, o carro empanou-se-me a uns quilómetros daqui, e tive que percorrer o caminho a pé, debaixo desta verdadeira tempestade, para vir ter consigo. Sabe, eu não uso telemóvel, sou avesso a essas modernices. Só nestas alturas é que percebo a utilidade que poderia ter tido... teria chamado um reboque, por exemplo, que me tirasse daquele atoleiro. A propósito, peço desculpa por estar a sujar-lhe a entrada da varanda com tanta lama e a molhar tudo em volta, pois é...", pareceu notar, só naquela altura, a poça que começava a formar-se em torno dos seus pés, como resultado da água que lhe escorregava gabardina abaixo.

"Não se preocupe com isso", consegui balbuciar, embasbacada que estava com o estranho aspecto do sujeito e o ridículo da situação.

"A Sra. Dra. entenda que eu não queria incomodá-la, muito menos a esta hora e com este tempo, mas assuntos da maior importância levaram-me a procurá-la, e finalmente encontrá-la, apesar de todos os contratempos. Espero que não me leve a mal, ter aparecido aqui assim, nesta figura - devo estar com um aspecto aterrador - mas não podia adiar por mais tempo esta demanda. Felizmente que lá no hospital me souberam indicar onde era a sua casa: sempre a subir a montanha, curvas e contra-curvas, muito cuidado com as bermas que a estrada é apertada e a encosta é íngreme, vai até à aldeia e depois, lá, pergunta pela Casa do Alto do Monte. Toda a gente sabe onde fica. A seguir só tem que subir mais uns dois ou três quilómetros, com mais curvas e contra-curvas, por um caminho de macadame mas, quando estiver aí a 300m da casa, vê-a logo".

Interrompi-o, sentindo que, se não o fizesse naquele instante, nunca mais o conseguiria fazer, tal o caudal de palavras por segundo que conseguia debitar, "está bem, não se preocupe, já falamos com mais calma. O importante agora é tirar essa roupa molhada, esses sapatos alagados e secar o cabelo, não vá apanhar um resfriado, que depois degenere em pneumonia, e lá terei eu que entrar ao serviço, logo agora que tenho uns dias de folga", tentei dizê-lo com um sorriso embora, interiormente, continuasse amedrontada com a figura do homem e o inusitado da situação. "Ora dê-me cá o casaco, os sapatos e as meias e sente-se nessa cadeira, com os pés em cima da carpete. Isso mesmo."

Foi quando se sentou que me olhou de frente e me sorriu. Tinha um belo sorriso, numa dentadura impecavelmente alva, de dentes certos, o pior era o resto... aquela cara como que "esborrachada", as orelhas enormes, tipo "abano", os olhos excessivamente grandes, quase que esbugalhados, a cabeça demasiado bicuda no topo, assente nuns ombros largos através de um pescoço fino, demasiado fino para suportar o peso da cabeça, ía eu pensando enquanto fui lá dentro buscar um toalhão para ele se secar e umas meias daquelas sem calcanhares, bem grossas, que servem em qualquer pé... até naquelas pirogas sobre as quais ele sustentava o corpo! Outro tipo de roupa para ele se mudar é que não tinha! Ainda que ali existisse vestuário de homem, que não era o caso, nada certamente serviria àquele corpanzil invulgar. O melhor era trazer mesmo uma manta, para ele se agasalhar e não entrar em hipotermia.

Levantou-se quando voltei, como um cavalheiro faria, enfiou os peúgos de lã, embrulhou-se, o mais que pôde, na larga e grossa manta que lhe havia trazido, e preparava-se para retomar o monólogo quando me antecipei: "agora volte a sentar-se, tente manter-se embrulhado, enquanto vou fazer um chá bem quente, para o ajudar a recuperar da molha. Quer comer alguma coisa?"

"Não quero incomodar, Sra. Dra., mas, na realidade, uma ou duas fatias de pão com manteiga (ou mesmo com queijo, se o tiver), não iriam mal... sabe, isto de ter feito o trajecto aos ziguezagues e debaixo de chuva, deixou-me com alguma fraqueza".

"Compreendo", respondi, com um sorriso espontâneo desta feita "e eu vou aproveitar e lanchar consigo, que está bem na hora".

"Muito obrigado pela sua gentileza, Sra. Dra., depois irei ao que me trouxe aqui".

"Certamente", respondi-lhe já do corredor, com uma pontinha de curiosidade a despontar e o receio a desaparecer, em sua substituição.

Regressei com o carrinho de chá bem composto: para além do referido líquido milagroso, trazia um cesto rechado de fatias de pão caseiro, manteiga, queijo, presunto, morcela, doce de laranja e geleia de marmelo. Também trazia um pão-de-ló, quase inteiro, que a Clementina tinha feito durante a manhã.

Os olhos do homem, já com o cabelo seco após bem esfregado com a toalha mas, inevitavelmente, despenteado, arregalaram-se de gula e, mais uma vez com um sorriso "de orelha a orelha", agradeceu o meu gesto.
"De nada, vamos mas é beber o cházinho, enquanto está quente, e comer. A seguir, conversaremos" atalhei antes que ele desatasse a falar com a boca cheia, cena que não me apetecia, de todo, presenciar.

Terminada a merenda, bem saciado que julguei estar o apetite do meu inesperado visitante, decidi tomar as rédeas da conversa e adiantei: "então, conte lá porque veio procurar-me e acabou por perder-se... por estar doente não foi, certamente, já que, segundo me disse, veio do hospital para aqui..."

O gigante, que eu já deixara de temer, riu gostosamente. Agora, passada a aflição e reconfortado que estava, em porto seguro, descobriu prazer no propósito de me fazer "roer" de curiosidade.

"Vá lá", insisiti, "nem sequer sei o seu nome nem ao que vem". Podíamos passar à sala, onde já acendi a lareira e está-se mais confortável, agora que a noite caíu por completo e a tempestade não abranda. Aí, poderá contar-me tudo sobre as aventuras que o trouxeram até este ermo agreste".

"Obrigado, mais uma vez, Dra. Mafalda" era a primeira vez que mencionava o meu nome, como se já me conhecesse, facto que me fez voltar a estremecer e pensar se não estaria a ser demasiado confiante... sabe-se lá se ele não seria um "serial killer"? sorri, interiormente, pelo absurdo deste pensamento, enquanto, simultaneamente, me perguntava, "e se, pelo sim, pelo não, telefonasse para a GNR para saber se anda para aí algum assassino perigoso à solta?"

Rapidamente os medos se dissiparam, quando passámos à sala e nos sentámos no sofá frente à lareira que, desde logo, nos invadiu com o calor que libertava.

"Pois bem, estimada Dra., o meu nome é Gervásio, e há muito que a conheço... de longe, é claro... e, acima de tudo, o que é mais curioso, por interposta pessoa..." deteve-se, como que a observar o efeito que as suas palavras provocavam em mim. Verificando que eu permanecia serena, na calma expectativa do que seguiria àquela revelação que nada me trazia à memória, prosseguiu: "na realidade eu vim ter com a Sra Dra. para ver se encontrava o meu mestre e bom amigo Perdido, de quem não sabemos há algum tempo e que, por razões que não vêm agora ao caso, julgámos ter-se perdido por estas bandas, precisamente pelo bizarro costume que tem de se perder em sítios desconhecidos, com as desculpas mais inconcebíveis, ou sem desculpas, só pelo gosto de se perder. A Sra. Dra. não sabe, mas isto é uma coisa hereditária, que já lhe vem do avô, ou talvez mesmo do bisavô, agora não estou bem certo... na realidade, o nosso comum amigo chama-se Rodrigo Rodrigues e Perdido é alcunha de família."

"Ah!" exclamei... pouco certa de saber quem era o tal "comum amigo" Rodrigo Rodrigues... Para disfarçar, perguntei, quase sem me dar conta de que o fazia "quer tomar um porto, Sr...?"

"Gervásio Leonel, um seu admirador", respondeu de imediato, com aquele sorriso destoante do conjunto, "aceitarei o porto com muito gosto".

"Estou feita", pensei. "Agora trouxe o homem para a sala, sentei-o comigo à lareira e vou deixá-lo emborrachar-se de porto até caír para o lado... e a seguir, o que virá? Não tarda nada, estou a abrir-lhe a alma e a falar-lhe dos meus sofrimentos mais íntimos... é so acompanhá-lo num copito ou dois... mas lá que até me apetece... não vou negar. Afinal, depois da partida do meu amigo Manuel nunca mais consegui falar com ninguém... sobre qualquer assunto, mas sobretudo sobre esse... será que me vai dar para aí? Deixemos andar, mas é ... afinal, a vida não é só o que planeamos... ". Dei por mim a rir, bem alto, enquanto descia à garrafeira da avó para ir buscar um bom "vintage"... "se calhar ainda acabo a noite no sofá, envolta naqueles braços que me dão a volta ao tronco, a dormir tranquilamente... a ronronar como o Nanu, se soubesse fazê-lo... é verdade, onde se terá escondido esse malandro?"

1 comentário:

Rosa dos Ventos disse...

Espero ansiosamente pela continuação da estória! ;-))

Abraço